Cinco fantasmas que você enfrentou na quarentena

maio/2020

Todos vimos alguma vez um cachorro acorrentado em um fundo de quintal e a placa de alerta: “Cuidado, cão feroz”. O animal se esgoela de tanto latir, ganir, dá saltos em vão e só cessa de avançar quando a corrente garroteia seu pescoço e o sufoca. Para, descansa, ofega e volta a ladrar.

Como nós, os cães repudiam o confinamento e por isso uivam, gemem, vociferam e se desesperam: privar de mobilidade o corpo equivale a cercear sua liberdade e seus movimentos. Nós, mamíferos, humanos ou cães, não nascemos para a privação dos movimentos e da expressão de nossa alma. Existimos para bater perna, caminhar e correr, marchar e conquistar espaços e vivenciar nossos laços afetivos.    

A pandemia COVID-19 nos reduziu a cães ferozes e a coleira da quarentena compulsória garroteou nossa liberdade. Não podemos avançar e conquistar novos territórios. E a privação nos remete a castigo: o que fizemos para merecer isso?

A coleira do distanciamento social nos deixou com esse gosto amargo de perdas. E decretou aberta a temporada de temores, medos, ansiedades e incertezas. Latimos, uivamos e gememos como cães, mas homo sapiens que somos, sublimamos e transcendemos a fera em nós e manifestamos pela linguagem uma variedade de afetos como medo, pânico, mal-estar, ansiedade e impotência.

Tudo começou rápido demais. Em poucas semanas a proteína assassina – o novo coronavírus – aterrissou entre nós, transformou milhares de corpos em hospedeiros e promoveu aqui, como em todo o globo, desordem e caos. A gente mal tinha saído da ressaca do carnaval e ela já se alastrava entre nós, com seus fantasmas e assombrações.  

Até hoje, somam oito semanas de confinamento. Estamos numa espécie de laboratório de resiliência humana. A vida confinada em casa, entre janelas e Windows, consagrou o protagonismo das telas. Nas telas digitais acontecem as aulas, o trabalho, os tutoriais, as missas, o laser, as compras, as lives. 

 

Primeiras assombrações

Os primeiros fantasmas vieram com a nuvem densa de medos e incertezas e traziam as impactantes imagens das redes de saúde em colapso na China e da Itália. A curva de mortes nos trouxe pânico. Em meados de março fomos atacados por duras interrogações: vamos ser contaminados? Algum ente querido será internado? Vamos dar conta dos protocolos sanitários? Como vai ficar meu emprego? Quanto vou perder do meu patrimônio? O que fazer para não ficar inadimplente? E se houver desabastecimento dos mercados? E se eu vier a precisar de respirador? Como é essa sensação de afogamento?  

Aos poucos, fomos distinguindo os fatos que merecem medo e os fatos que só provocam desespero. E fomos aprendendo a hierarquizar uns dos outros, escutando apenas os  alertas para o cálculo de risco. Os fantasmas do desespero foram perdendo potência. Foi quando percebemos que, mesmo na máxima adversidade, nossa inteligência pode se manter preservada, em resiliência.

 

Segunda leva de fantasmas

Em paralelo, sofremos com a perda de antigas rotinas. E veio a sensação de estranhamento do tempo monótono e amorfo, um cotidiano achatado, sem distinção entre horas, dias e semanas. Uma rotina diferente da cordilheira de dias antes, com seus altos e baixos, de quando podíamos gritar – Sextou! Para quê saber agora se é terça ou sexta-feira, se até o sábado ficou insosso e o domingo perdeu sabor, se trancafiados em casa?

Uma boa e velha agenda tem o poder de exorcizar assombrações. Cada um, ao seu modo, pode ter afugentado fantasmas com uma simples agenda, um cronograma com horários de dormir e despertar, das refeições, da meditação, dos cuidados do corpo, a hora de estudar, trabalhar, assistir as lives, etc. Organizar-se no tempo, estabelecendo rotinas que nos levantem. Fantasmas adoram zumbis mortos vivos, queixosos, largados, vagando erráticos entre a cama e o sofá, o smartphone e a geladeira, consumindo calorias e repercutindo memes.  

 

Fantasmas da privacidade perdida

A convivência compulsória no mesmo espaço, por um período prolongado, pode cobrar um alto preço emocional. A sensação de invasão e perda de privacidade, mesmo com pessoas próximas, podem gerar crescentes atritos e fricções. A proximidade forçada entre corpos aciona conflitos e eis de volta o cão feroz do início da crônica: o bicho confinado, irritado e agressivo, ataca. Fantasmas se multiplicam com o clima hostil na quarentena. 

Uma boa tática é reconstituir o cotidiano em grupo, repactuando pequenos acordos, refazendo contratos íntimos, da necessidade de atenção às finanças e aos cuidados com a saúde, do amor e do afeto, de respeito à intimidade.  Fantasmas não curtem feedback. Consequentemente, desaparecem quando conjugamos os verbos dialogar, escutar, negociar, repactuar, etc.  

 

Nostalgia e luto de velhos papéis 

A privação social gerou também um afastamento de ambientes de trabalho. Sentimos falta dos espaços físicos onde inscrevemos nossas digitais profissionais, onde compartilhamos cotidianos com colegas e vivenciamos um lugar psicológico em uma hierarquia. Foi no teatro laboral onde extraímos grande parte das substâncias de nossa autoestima. O trabalho remoto, no home office, não tem como preencher a demanda de elementos simbólicos como tinham os velhos cenários laborais pré-pandemia. 

E o que fazer? Se deixar sequestrar pela nostalgia? Remoer a saudade dos tempos de glória que já passaram? Recado: na nostalgia, os fantasmas se divertem.

 

Lições da pandemia   

A experiência da pandemia de 2020 é uma oportunidade única de aprendizagem. Cada indivíduo pode tirar proveito dela para exorcizar o fantasma do individualismo e a crença infantil de “cada um por si”.  

Historicamente, as epidemias promoveram grandes metamorfoses na vida das nações. Foram elas que impulsionaram a ciência e o desenvolvimento da Saúde Pública. As sociedades inglesa e francesa tomaram consciência, depois da devastadora epidemia de cólera de meados do século 19, de que sobreviveriam se fizessem investimentos pesados em saneamento básico em Londres, Paris e outros centros urbanos.

Aprenderam que a cólera matava até mesmo os nobres escondidos entre muralhas, nos castelos distantes. E que, quando se fala em saúde, é preciso ter em mente pacto coletivo.

Tomara que as campanhas solidárias que se multiplicam nas mídias sociais, ao longo dessa quarentena, sejam um sinal vivo desse retorno ao sentido social da vida entre os homo sapiens.    

Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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