Coronavirus e medos líquidos

mar/2020

Corona vírus, ameaças à democracia, milícias, fanatismo, terrorismo, crise climática, culto à ignorância, etc., são fenômenos do tempo presente que tem produzido medo, ansiedade e disseminado muita inquietação.

Lembrei de um livro do famoso sociólogo Z. Bauman – Medo Líquido, de 2005. Bauman sabe se comunicar com seus leitores. Escreve ensaios de modo que quem o lê se sinta dentro do fluxo da história e ao mesmo tempo convocado a fazer uma autorreflexão a respeito dessa mesma história.

O autor contrapõe liquidez das novas relações sociais à solidez das antigas estruturas baseadas no iluminismo, nas certezas da razão e das velhas narrativas que se derreteram. A vida atual tomou a forma da água, sua fluidez, devido a emergência de novos padrões de sociabilidade. Vivemos numa dinâmica social instável, flexível e insegura, resultado do avanço da modernização ocidental. Já não há mais o compartilhamento de âncoras e bússolas como antigamente.

Antes, diz ele, o conhecimento lançava sua luz sobre tudo e decifrava os enigmas, dissolvendo os velhos medos e todas as suas engrenagens secretas seja pelo método científico e ou pela lógica inquestionável do modelo capitalista. Mas, ao que parece, tudo o que é sólido já se desmanchou no ar…

Em Medo líquido ele distingue o medo primário – ataques de animais, pestes, deuses implacáveis, intempéries, etc. -, de um medo secundário, próprio do cenário novo onde a transitoriedade e a fluidez são a tônica, um medo humano, demasiadamente humano, resultado da perda de confiança nos laços fragilizados, liquidificados, a fé no contrato social, na solidez das instituições e nas pessoas. O medo da coletividade ameaçadora que já não consegue inspirar a ideia de que “pode contar comigo”. Basta pensar nos idosos sob a enxurrada de informações sobre o coronavirus e sua dúvida sobre com quem poderão contar. Com os vizinhos que desdenham dos protocolos de quarentena e não se preocupam com a coletividade?

Bauman se utiliza de uma imagem encontrada em um romance de Milan Kundera: uma estrada sob densa neblina, uma neblina constante que permite se vislumbrar apenas as margens da estrada, mas impede se enxergar o horizonte e antecipar qualquer ameaça mais à frente. O viajante é livre, “mas sua liberdade sob neblina é parcial, não na escuridão total na qual não veríamos qualquer coisa, nem conseguiríamos nos mover”. Continua ele: “Enxergamos 30 ou 50 metros à frente, admiramos as belas árvores que ladeiam a estrada pela qual caminhamos, observamos os passantes e reagimos aos seus movimentos e evitamos esbarrar nos outros e contornamos pedregulhos e buracos – mas dificilmente conseguimos ver o cruzamento um pouco mais à frente ou o carro a 100 metros de distância, mas que se aproxima de nós em alta velocidade. ”

O medo líquido brota dessa dura constatação: já que não temos força para dimensionar os riscos insondáveis do horizonte, nos resta concentrar o foco nos riscos imediatos e de curto prazo. O problema é que para o viajante da estrada sob neblina o medo de não saber o que há no horizonte distante – o irreconhecível, o insondável que permanece à frente – permanece como uma pedra no fundo do lago da angústia. Mas a vida pragmática, diz ele, “exige que nossos esforços de precaução recaiam sobre os perigos visíveis, palpáveis, conhecidos e próximos, perigos que podem ser previstos e cuja probabilidade pode ser calculada – embora os perigos mais assustadores e aterrorizantes sejam precisamente aqueles que permanecem insondáveis. ”

Pânico e ansiedade de um lado, do outro uma progressiva redução da capacidade de percepção, como se se produzisse uma atrofia do nervo ótico com a perda da visão de longo prazo, instalando um estreitamento na visão perspectiva. Um passo para o desprezo à profundidade e ao pensamento complexo e crítico, coisa de cabeção que produz textão que ninguém lê.

A síndrome do Titanic, outra metáfora espetacular sobre o medo líquido, surgiu  após o estrondoso sucesso cinematográfico do famoso transatlântico, símbolo claro da inovação tecnológica, no início do século XX. O Titanic falhou em sua promessa de uma travessia segura em uma nau carregada de diferentes classes sociais, mas com previdência de coletes e botes salva vidas restrita apenas à elite. Nem preciso aqui mencionar o quanto a palavra previdência arrepia os nervos e amedronta quem é trabalhador. Finalizo com um trecho assombroso do escritor Jaques Attali:

 “O Titanic somos nós, nossa sociedade triunfalista, autocongratulatória, cega e hipócrita, sem misericórdia para com seus pobres – uma sociedade em que tudo está previsto, menos os meios de previsão … Todos nós imaginamos que existe um iceberg esperando por nós, oculto em algum lugar no futuro nebuloso, com o qual nos chocaremos para afundar ouvindo música…”

Torcendo pela democracia no Brasil sob ataque de descivilização (1. Veja a  entrevista de Bauman ao site IHU, link abaixo) e pelo fortalecimento do Sistema Único de Saúde, nestes tempos de icebergs e neblina intensa.

Coragem!

 

1)     https://pt.scribd.com/document/180054616/A-Sindrome-Do-Titanic-e-Os-Seus-Medos-2-Doc

 

Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
Mais artigos

A potência oculta dos ritos de passagem

Vocês já repararam quantos ritos celebramos nos meses do verão? A temporada começa antes do Natal. Sagrados ou profanos, eles estão presentes nas tradicionais confraternizações que demarcam o fim do ano laboral, com os lúdicos “amigos-secretos”, típicos ritos “de...

ler mais

Priorizar a saúde mental

Foi há uns tantos anos atrás, eu atuava em um RH do Polo Petroquímico de Camaçari, foi quando escutei um operário chamar um colega de chão de fábrica, de Tarja Preta. Rodrigo era seu nome e ele havia usado antidepressivos ao longo de um período da doença. O bastante...

ler mais

Não aperte a minha mente: saúde mental em tempo de urgência

O tempo está passando muito veloz, a velocidade é o novo valor,  virou uma commodity, a regra do quanto mais rápido melhor se consolidou. Não apenas comemos fast food, como também escutamos música e recados no WhatsApp de forma acelerada. E há quem assista filmes em...

ler mais

Os saveiros e a aceleração social do tempo

Um dos produtos mais misteriosos que os mestres de saveiros transportavam nos barcos ancorados no Porto da Barra de minha infância era o Tempo. Traziam todo tipo de mercadoria para abastecer a feira livre do bairro, vindos das mais longínquas praias, muito além da...

ler mais

Pensamento crítico e inteligência artificial

Era o Reino das Matemáticas, no curso de Tecnologia da Informação. Foram vários semestres ao longo de quatro anos, diferentes turmas, mas em cada uma  fui recebido com um misto de cordialidade e desconfiança. Temiam que a disciplina de Psicologia fosse perda de tempo...

ler mais

junte-se ao mercado