Dicas da festa do Bonfim para se resgatar o carnaval de Salvador

jan/2018

A festa do Senhor Bonfim se inicia na Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia de onde parte em caminhada uma multidão de fiéis, conduzidos por baianas com roupas brancas e potes de água de cheiro. Atravessam os oito quilômetros até a igreja do Bonfim onde ocorrem as celebrações e a lavagem – a parte sagrada – e a festança e o carnaval – a parte profana. É uma festa extraordinária, um ritual transbordante de significados. Envolve toda população e se utiliza dos dois idiomas próprios locais da cultura do sincretismo cristão e dos cultos de matriz africana. E todos se entendem. Na semana passada fui participar da festa. Caminhei longo trecho do cortejo, vibrando e captando o espírito da festa.

 

Histórias

O capitão-de-mar-e-guerra da marinha portuguesa Theodózio Rodrigues de Faria jamais poderia imaginar que a réplica da imagem do Senhor do Bonfim, trazida de Setúbal, sua terra natal, em 1745, para pagar uma promessa feita durante um naufrágio, faria tamanho sucesso e se tornaria o símbolo máximo de uma das mais fascinantes manifestações religiosas e ponto alto da cultura do povo baiano.

A imagem do Senhor do Bonfim foi entronizada no altar-mor daquela igreja em 1754 e logo caiu nas graças do povo baiano, transformando a colina em lugar de culto e romaria. A sala de milagres, repleta de ex-votos, atesta sua fama. Já em 1809 se tem notícia de uma fita de 47 centímetros de comprimento – a medida precisa do braço direito da estátua do Senhor do Bonfim. A partir dela se fizeram infinitas cópias que se multiplicaram, se difundiram, foram industrializadas em muitas cores. Até o turismo oficial baiano adotou as famosas fitinhas do Senhor do Bonfim como difusoras do produto Bahia.

Antes festa – marcada sempre na primeira 5ª feira após o domingo dos Santos Reis – era preciso mandar limpar o lugar e, conforme registro de 1773, a Irmandade da Devoção do Senhor do Bonfim ordenava aos escravos a empreenderem imensa faxina, com lavagem de escadarias e átrio. Os escravos, deduz-se, projetavam seus mitos e significados à lavagem e o que era para ser mera faxina se transformou em ritual de purificação e reverência a Oxalá, o equivalente afro-baiano ao Senhor do Bonfim.

O hino ao Senhor do Bonfim é arrebatador, ao mesmo tempo religioso e cívico. Foi composto já no século XX, encomendado para o centenário do 2 de julho, em 1923, data da Independência da Bahia. Segundo a letra do hino, o Senhor do Bonfim tomou partido pela Bahia, deixando para trás o jugo lusitano. O Senhor do Bonfim converteu Jesus em baiano. Como é que ele não iria ganhar este cartaz todo na cidade?  Afinal ele é o “Redentor que há cem anos nossos pais conduziste à vitória, pelos mares e campos baianos”. E se tornou a guarda imortal da Bahia.

Cortejo e Lavagem

Como toda festa popular, a lavagem do Bonfim é alvo do recorrente oportunismo marqueteiro de políticos de plantão, ávidos em aparecer bem na fita diante da multidão de eleitores.

Nada disso atrapalha o espantoso brilho da festa que consegue preservar elementos genuínos de como fazer um bom carnaval. Primeiro de tudo, é preciso haver uma atmosfera de reconciliação como nos antigos carnavais, quando ainda vigorava o riso, a brincadeira, a anarquia e a espontaneidade, e quando não havia paranoia com o espaço público.

O reencontro com o lirismo e a poesia me deixou inebriado. Foi aí que tive a inspiração de coletar estas dicas para resgatar o claudicante carnaval baiano. Testemunhei ao longo da caminhada sagrada e profana cenas de uma espiritualidade inspirada em valores de gente comum, de famílias que saíram de casa para ver a passagem do cortejo e se infiltrar nas rodas de samba, de ver os grupos folclóricos se apresentar, em meio ao centenas de sindicalistas de todas as cores, de servidores municipais, estaduais e federais, membros de associações laborais, dezenas de caravanas de representantes de cidades do Recôncavo baiano, drags pintando o sete e, soltos no ar, os mestres capoeiristas alados.  Ver gente tomando posse das ruas em convivência festiva.

Lições da festa

Uma das funções da festa, segundo o filósofo e linguista russo Bakhtin, é levar a comunidade se permitir descobrir o novo e o inédito. Para ele o carnaval (pesquisou os carnavais na Europa medieval) “seria o locus privilegiado da inversão, onde os marginalizados se apropriam do centro simbólico, numa espécie de explosão de alteridade, onde se privilegia o marginal, o periférico, o excludente. ”  E não foi precisamente o novo e o inédito que o carnaval dos camarotes, dos blocos de cordas e abadás caros sufocou?

O carnaval soteropolitano, camarotizado, enfermo e sem identidade, está prestes a virar uma rave pasteurizada, na antiga Fonte Nova. Está na hora de buscar ressuscitar a festa. Sobrevoando o cortejo com um drone imaginário, escuto o que diz o profeta Bakhtin:

“O espetáculo carnavalesco –  sem atores, sem palco, sem diretor –  derruba as barreiras hierárquicas, sociais, ideológicas, de idade e de sexo. Representa a liberdade, o extravasamento; é um mundo às avessas no qual se abolem todas as abscissas entre os homens para substituí-las por uma atitude carnavalesca especial: um contato livre e familiar entre os homens. ”

A receita para ressuscitar o carnaval de Salvador e revitalizar seu “conceito” está na riqueza de elementos desta festa que mantém espontaneidade, vitalidade e vibração. Abraçar o espírito do Bonfim pode ser um bom começo.

Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.

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