Entre a fé e o luto

jan/2019

2018 terminou como começou. Com o Brasil dividido. Se a divisão até final de outubro era entre os que defendiam a “mudança” e os que temiam “aquela mudança”, no início de janeiro a divisão se dá entre os esperançosos na mudança em que apostaram e os desesperançados diante da inevitabilidade da mudança a que se escudaram. O discurso da fé, como a maior parte dos discursos de fé, é conduzido por uma certeza cega; o discurso do luto, como a maior parte dos discursos de luto, é conduzido por uma certeza resignada.  Um crê na certeza de um renascimento do país; outro na certeza de um final infeliz. Enfim, tratam ambos, de fatos consumados. Os dois lados ensaiam alguma argumentação racional em defesa de seus pontos de vista, sustentada no histórico de afirmações do presidente eleito. Que, aliás, serve a ambos, igualmente, ainda que de maneira diametralmente oposta. Ou seja, a transparência reveladora dos “méritos” e dos “deméritos” carrega, em tese, a virtude da transparência em si. Ora ajuda a um, ora atrapalha a outro, quando não atrapalha ou ajuda a ambos, mas sempre, finalmente, ajuda a si mesma. Do mesmo modo, com que a excessiva informalidade e a absoluta falta de rito nas atitudes de Jair Bolsonaro são percebidas como simplicidade, por um lado, e como despreparo, pelo outro. Mera questão de opinião, bem se vê. Porque são atitudes que nasceram para “sofrer” opiniões. Talvez, aí se sustente esse acirramento de posições: na insegurança ferozmente reativa em lidar com o incerto, seja para evitar o flagelo do pressentimento do engano, seja para não conceder ao fraquejamento nas convicções. Até porque cada um sabe das concessões e negações a que se dispôs na luta a favor e contra o amigo e o inimigo que dispunham.

 

O fato é que, contraditoriamente, por mais claro e transparente que se tenha tentado desenhar o governo que se aproxima, todos, no fundo, sabem que clareza e transparência não constituem necessariamente qualidades absolutas, sobremaneira quando escancaram cisões. Usam, agora, tanto a fé quanto o luto como proteção, diante do inexorável. Um inexorável com a agravante da questão “o quê exatamente inexorável?”

 

Ainda não sei. Mas em 2019 teremos como tarefa descobrir o que, como nação, possuímos em comum. E só daremos esse passo ao tirar as vendas dos olhos para enxergar uns aos outros, admitindo a possibilidade de estarmos errados, abaixando-se assim o muro das certezas cegas, responsável pelo enfraquecimento da razão – tudo o que não precisamos nesse novo começo.

 

Fé e luto. Euforia e medo. Uma nação pulsando nos extremos. Que Brasil surgirá disso? Alguém, que abstraia da fé ou do luto, saberá dizer? Num país dividido por tantas exclamações explícitas, não seria surpresa que a única consonância seja uma interrogação implícita e, por enquanto, impronunciável.

 

Karin Koshima
karin@recomendapesquisas.com.br
(Publicado originalmente no Jornal A Tarde)

 

Karin Koshima

Karin Koshima

Colunista

Diretora Executiva da Recomenda Pesquisas & Consultoria – especialista no comportamento do consumidor, eleitor e posicionamento de marcas. Às informações derivadas das pesquisas, agrega consultoria em planejamento, estratégia e marketing.

Se formou em psicologia na UFBA, é psicanalista com especialização em Psicologia pela USP (São Paulo), também Mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia.

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