Existe vida depois da Internet?
Espanta aos observadores do comportamento humano a velocidade da disseminação dos aparatos tecnológicos e sua crescente compatibilidade com os usuários. A conectividade mais acessível tornou o ambiente virtual o espaço mais importante para o fluxo dos processos. A vida humana acontece nas redes e a cultura on-line flui nas nuvens: sejam nos relacionamentos pessoais, nas salas de chat, na vida social e no lazer, nos trâmites comerciais, financeiros e jurídicos, na formação profissional com o EAD, na aquisição de produtos e serviços como o Uber e hotéis, sem falar da vida amorosa com os sites de namoro e de fantasias sexuais, no marketing, etc. Bem vindos à Antropologia dos Mundos Virtuais.
Aos poucos nos fundimos aos smartphones, aos Ipads e laps e passamos a teclar palavras novas como Google, Face, Instagram, Tweet, email, Snapchat, blogs e verbos como tuitar, compartilhar, postar e deletar.
Além da compatibilidade dos corpos com as telas, a cultura on-line também gerou a preocupante dependência por visibilidade. Aparecer, virou febre e a demanda por vitrine, compulsão. Sem senso crítico, cenas triviais passam a ser celebradas. A postagem de imagens banais, sem motivo para comemoração, revela a necessidade de destaque e visibilidade. Está aberta a temporada dos selfies e do seu prolongamento, um bastão, cuja função é dar mais perspectiva e fundo ao retrato protagonismo do “Narciso que acha feio o que não é espelho”.
Quem chegou no momento presente formatado pela cultura anterior à Internet trouxe na mochila a aprendizagem de antigas tecnologias. Quem veio da escola analógica tem o direito de estar perplexo. Foi Michel Foucault, o pensador do poder, que interpretou o quanto aqueles dispositivos da velha “tecnologia-escola”, do livro e do lápis, como a prática da escrita e da leitura silenciosa e no isolamento, promoveram resultados em termo de cultivo da introspecção. E de reflexão. Este modo de subjetivação produziu o homem moderno e “individualista”, senhor de um mundo interior próprio, com o qual travava diálogo interno e íntimo, amparado por livros, romances, saraus literários e algum cultivo de erudição.
Havia a crença de que era preciso desenvolver valores e atitudes como discrição, recato, modéstia e senso de pudor. Era um tempo no qual se cultuava a preservação do mundo íntimo e sensível. Valores como afetação e vulgaridade devastariam a morada interior daquele “self”, típico da transição dos séculos XIX a XX.
Os modos de subjetivação foram totalmente alterados em nossa Era da Dispersão. O que mais se destaca no comportamento dos usuários nas redes é, além da ausência de sinal de introspecção, a demanda febril por visibilidade que desautorizou o antigo pudoris, do latim, a vergonha de chamar atenção sobre si. Parece que foi decretado o fim da intimidade em nome da visibilidade dos “selfies”. A demanda por se sobressair e cultivar mais seguidores nas redes expulsa a compostura e entroniza a superexposição. Este escancaramento da privacidade, em muitos casos, dá frutos como prática comercial. Entra em cena a mercantilização da intimidade. Valores e virtudes transmitidos há séculos, de repente, são lançados no acervo de um museu esquecido.
A fragmentação de fontes e o excesso de informação nos leva a fazer várias coisas ao mesmo tempo, sem dar para manter o foco em nada, adverte Nicholas Carr, pesquisador dos efeitos da Internet no nosso cérebro. O atropelamento da sensibilidade e a imposição da velocidade e do bombardeamento de informações “já estão debilitando nossa capacidade de concentração e de reflexão”, afirma este escritor, recentemente indicado ao prêmio Pulitzer. Menos pessimista, o sociólogo Manuel Castells, autor de The Internet Galaxy, rebate: “Se a internet tem algum impacto nas interações sociais, ele é positivo. Para a maioria das pessoas, ela é uma extensão da vida em todos os seus aspectos”. O debate é inflamado.
Sem habilidades aprendidas para desenvolver a introspecção, passamos a existir compulsivamente do lado de fora, publicizando imagens do self numa espécie de “curadoria de si” onde se dissimula um semblante de felicidade, que já não convence ninguém. A “vida editada” dissimula as razões de se mostrar e aparecer nas prateleiras.
A demanda por visibilidade tem transformado cenas de foro íntimo – como uma gestação ou um mero almoço – em marketing pessoal. Likes, curtidas e compartilhamentos viraram inquestionáveis métricas de sucesso e reconhecimento. Afinal, foram desativados os velhos “modos de subjetivação” e como já não há mais o self próprio e pessoal, capaz de instigar reflexão, senso crítico e, sobretudo, gerar autorização de dentro para fora, resta esperar o reconhecimento e a autorização do lado de fora, dos Facefriends ou de algum influenciador digital da moda. Sem investimento no self, só resta mendigar curtidas nos “selfies”.
Carlos Linhares
Colunista
Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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