O que você quer ser quando envelhecer?

nov/2018

As conquistas da ciência e da tecnologia alteraram os ciclos da vida humana. As estatísticas comprovam exaustivamente como, ao longo do século 20, décadas de vida foram agregadas a nossa existência. A finitude foi deslocada para a frente: estamos em plena revolução da longevidade. Reaprender e reinventar o estilo de vida é o desafio necessário para atravessar a longa trajetória.

Em 1900, a vida humana se encerrava entre 35 a 40 anos, em 1945, a média de vida saltou para 43 anos. A redução da subnutrição, de epidemias e da mortalidade infantil, a ampliação das redes de saneamento urbano e a educação em massa expandiram o tempo da maturidade, exigindo um novo posicionamento. O nome dado a esta nova etapa é envelhescência.  

Artistas setentões como Maria Bethânia, Ney Matogrosso, Rita Lee, Caetano, Gilberto Gil se rebelaram em relação aos clichês da velhice de antigamente. Assim como eles, outros ageless se recusam a pendurar as chuteiras e ir para o estaleiro. Optam por gozar o bônus da longevidade, buscando injetar sentido ao novo do tempo do ciclo vital. Ageless não se aposentam de si mesmos, preservam sonhos e projetos. E nos lançam a questão: o que você quer ser quando envelhecer?

A nova longevidade se apresenta como uma conquista, mas também como ameaça. Além da decadência física e das perdas corporais e simbólicas, há o drama social de idosos de países cujas populações envelheceram antes de terem se desenvolvido, acumulado riqueza e aperfeiçoado seu sistema de previdência social.

É preciso criar proteção para a dignidade humana da pessoa velha. Além do fim dos negócios, da vida laboral, a diminuição da vitalidade vem acompanhada de perda de importância social. O Estatuto do Idoso protege de forma limitada as pessoas das vulnerabilidades do envelhecimento. E tudo se processa em um caldo de cultura que escamoteia a velhice e não dissimula sua obsessão pela jovialidade nas diversas modalidades de culto ao corpo, rejeição aos sinais da idade, etc. Tintura capilar, botox, máscaras anti-idade, cremes antirrugas, cirurgias plásticas, lipoaspiração compõem o kit da gerontofobia.

A OMS (Organização Mundial de Saúde) estabelece quatro eixos para quem deseja preservar autonomia (posse de funções mentais) e independência (locomoção) na envelhescência.

Em primeiro lugar, tomar as rédeas da própria saúde e estabelecer limites à vida sedentária, ao descaso com o sobrepeso, ao consumo de álcool, tabaco e outras adições. Afinal, quem irá arcar futuramente com as consequências de uma existência inconsequente? Quem vai pagar a conta?

O segundo pilar foca na abertura à aprendizagem, ao conhecimento e ao credenciamento de novas competências cognitivas. As palavras de ordem são reinventar-se e reaprender: do manejo de novas tecnologias a modos de pensar.

O terceiro eixo: a construção de redes de relações, a preservação de antigas parcerias e a abertura a novos vínculos. Investir na vida social, fugir do casulo e do retraimento.

O quarto e último eixo é o cuidado da mente, o autoconhecimento e uma atenção crítica ao teor das próprias queixas. Cultivar lembranças pode ser uma arte, mas vira nostalgia quando dissimula comparação entre mundos. O risco maior é se construir uma memória fantasiosa sempre pronta para renegar o presente, o aqui e agora. Típico de quem repete o chavão “no meu tempo”, imenso equívoco.  Nosso tempo é agora.

Por minha conta, acrescento um quinto eixo: o da espiritualidade compartilhada. Observei largamente na trajetória de vida das matriarcas de minha família – mãe, avó e tias – o valor de uma fé vivida socialmente. Elas encontraram na comunidade de crença um sentido para a caminhada. Fosse em novenas e missas, quermesses e corais, fosse em obras assistenciais ou na contemplação estética da arte sacra e dos textos das escrituras, todas comungavam de uma espiritualidade vivida com sociabilidade, com partilha de símbolos e presença afetiva em rituais. Havia compaixão e resiliência na velhice das saudosas matriarcas.

Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.

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