Cultivar cooperação numa era de individualismo
Há quem diga que o espírito de cooperação está em baixa e que é muito difícil hoje em dia praticar empatia e altruísmo numa cultura ultracompetitiva, como a que vivemos. A máxima que rege nossa convivência parece ser o mantra “farinha pouca, meu pirão primeiro”.
Na margem oposta, parece espantoso o número de indivíduos solidários, dispostos a cooperar com ações de assistência social em entidades filantrópicas, paróquias, campanhas e centros comunitários ou em eventos como os recentes Jogos Olímpicos de Paris, que surpreendeu pelo expressivo contingente de voluntários. Sem dúvida, ainda há muita gente com ganas de engajamento em movimentos globais de colaboração na área da ciência, tecnologia e ativismo social.
O dilema permanece: como a cultura colaborativa pode se sustentar dentro de uma mentalidade nutrida pela competição?
Como arrefecer os efeitos de uma aprendizagem que desde cedo nos incentiva a competir, a batalhar pelo primeiro lugar no pódio, a tirar as melhores notas e arrebatar medalhas?
Haverá ainda espaço, apesar do crescente individualismo, para a promoção de laços sociais significativos e para implementar uma cultura de colaboração?
Para o filósofo francês Gilles Lipovetsky, estudioso do tema, o fenômeno do individualismo na sociedade contemporânea se reveste de outra dimensão. Em “A era do vazio” (1988), ele se refere ao fenômeno como “hiperindividualismo” devido a sua ênfase na promoção da autonomia individual e na busca de prazer pessoal.
A marca do hiperindividualista é a busca de satisfação prioritária e, muitas vezes, às custas do bem-estar dos outros. O que pode gerar um ambiente onde a empatia e a solidariedade venham a ser ofuscadas pelo desejo de gratificação imediata.
É uma “priorização de si”, em um contexto no qual o indivíduo já não é mais mediado e influenciado por instituições tradicionais como a religião, a comunidade e a política, que antes estimulavam as práticas de alteridade e a vivência de antigos valores.
Essa dinâmica autocentrada se dissemina e penetra nos espaços de aprendizagem e de trabalho – escolas ou empresas -, sejam públicas ou privadas. Todas se veem diante do dilema competição versus cooperação. Acontece que os processos de trabalho nas organizações dependem de atitudes e valores como interdependência, confiança, disponibilidade de escuta, atitude colaborativa, empatia, etc. Por isso as organizações apelam para a disseminação de uma cultura colaborativa por meio de vivências e treinamentos.
A colaboração e a cooperação promovem a sinergia que, traduzindo, é quando o todo supera a soma das partes. Ou, em outros termos, o resultado da colaboração entre pessoas, equipes ou elementos é maior do que a soma de suas partes individuais.
Considerado um clássico, o livro “O declínio do homem público: as tiranias da intimidade”, escrito pelo sociólogo norte-americano Richard Sennett (1982), traz em seu título uma interrogação eloquente que poderia ser alterada para “aonde foi parar o espírito público?”
O que teria causado a retirada do indivíduo de seu engajamento na malha social? Ou, como é que, na relação entre vida pública e esfera privada, venceu o culto do indivíduo ou “a tirania da vida íntima sobre a coletiva”? Para ele, o mundo público foi usurpado pela cena psíquico-privada em detrimento do coletivo e da sociedade. (Sennett, 1988)
Assim como sua mentora Hanna Arendt, Sennett é cético em relação à cooperação despolitizada e cega, ainda mais em um contexto de sociedade desigual. Se não houver formação de caráter baseada no respeito, os gestos de cooperação serão colonizadores, opressores e patriarcais, embora dissimulados de fraternidade e caridade, conforme se lê nas páginas de seu livro “Respeito, a formação do caráter em um mundo desigual”. Cooperar, para ele, é sobretudo respeitar, ainda mais numa sociedade assimétrica e desigual. (2004)
O paradoxo entre cooperação/solidariedade versus indiferença/individualismo me lembrou o dilema dos porcos espinhos, uma fábula escrita por Arthur Schopenhauer (1788-1860) e divulgada por Freud, onde descreve a dificuldade dos animais em sobreviverem numa era glacial. Os porcos morriam de frio e careciam do calor do outro. Entretanto, ao se aproximarem, se feriam e, em seguida, se afastavam, magoados e sofridos.
Separados, os porcos espinhos começaram a morrer congelados e os que sobreviveram voltaram a se aproximar, mas com jeito, com precaução, conservando uma certa distância do outro, mínima, o suficiente para conviver sem ferir, sem magoar, sem causar danos recíprocos. Conseguiram sobreviver graças à troca de calor, à cooperação criteriosa: com “distância ótima”, um provável sinônimo de cuidado ou respeito.
Para surpresa de todos, Lipovetsky se recusa à visão simplista do sujeito hiperindividualista como alguém meramente “egocêntrico e egoísta”. Uma percepção equivocada e cheia de juízo de valor da moral cristã, segundo Lipovetsky, que enxerga o fenômeno do hiperindividualismo como resposta possível às condições socioculturais do nosso tempo, que instiga a busca da satisfação pessoal.
De minha parte vejo que, assim como aconteceu com os porcos espinhos, em algum momento, devido à contingência da vida, vamos ser impelidos a reconhecer que o inverno glacial é inexorável e dependemos da proximidade do outro e da partilha do seu calor vital.
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Carlos Linhares
Colunista
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