A Ressurreição da comunidade

abr/2017

A Páscoa é a festa maior do calendário cristão, mas grande parte dos seus mistérios e símbolos vieram da Páscoa judaica, do Antigo Testamento. O cristianismo herdou e transfigurou tudo, atribuiu novos significados à Pessach (passagem) liderada por Moisés, o líder enzimático que aglutinou a comunidade judaica do jugo egípcio, encarnado na figura do Faraó.

A Páscoa judaica celebrava a passagem desta miserável condição de escravos para a humana condição de homens e mulheres livres. Para rememorar estes fatos arcaicos, os judeus compartilhavam um cordeiro com pães ázimos numa ceia litúrgica, Cordeiro este que Jesus de Nazaré encarnou, protagonista da nova Páscoa. “Eis o Cordeiro de Deus”, o Messias, o novo Moisés cuja traição e morte ocorreram durante as celebrações do Pessach judaico, dando outro sentido à Páscoa e ampliando o significado de escravidão.

A festa da Páscoa põe em movimento os principais arquétipos bíblicos, evoca um fluxo de metáforas e imagens que a moldaram cultura e valores universais. Cristãos ou não, todos somos tocados pela carga poética de cenas pascais como o Lava Pés, a Via Crucis, o beijo de Judas, a Santa Ceia, o Pão e o Vinho. A cena de pusilanimidade do governador romano Poncius Pilatos, lavando as mãos, a eleição de Barrabás, o Bom Samaritano no caminho do Calvário, o véu da Verônica e o canto do galo: tudo irradia poesia compactada e assimilada por quem crê e quem não crê. Toda esta poesia pascal é celebrada nas procissões e nas celebrações. O mais importante é apostar no brado do Aleluia, Jesus ressuscitou!

Tanto a Pessach judaica como a Páscoa cristã destacaram a mediação da liderança dos seus protagonistas, cumprindo o papel de enzima aglutinadora de comunidades à espera de libertação. Moisés e Jesus protagonizam esforços imensos para a ressurreição desta potência situada entre o Estado (Faraó e Pilatos) e a Sociedade (judaica) chamada Comunidade. O Estado aparece em ambos os contextos bíblicos como entidade estruturada e armada para drenar o esforço coletivo por meio de impostos e, aqui entre nós, promover despoticamente o crime. A Sociedade, etérea e espectral, não tem a mesma potência do Estado e pode fazer valer o clamor das pessoas desarticuladas.

É a comunidade que pode deter a morte e sustentar a ressurreição. E a morte chegou em ondas progressivas de precarização de serviços e o declínio da inclusão da vida pública. Há perdas, deterioração e decadência: segurança, educação, cultura e saúde são alvos dos esquemas dos faraônicos como também a devastação do ambiente físico e da ecologia. Tudo virou farsa, em especial a política, reduzida à lobby e deboche.

Páscoa é festa da comunidade viva e pulsante, ela precisa ressuscitar dos mortos, dos sofás, da apatia, retomar a força coletiva e experimentar ações de transformação. É a comunidade que está sendo convocada a sair da inércia e partir para uma nova terra. Entre os edifícios do Estado e da Sociedade, é a Comunidade que precisa aglutinar potência de ressurreição.

A Páscoa evoca um pacto de ressureição da comunidade nas mais diferentes formas de articulação: comunidade como redes de familiares e amigos, de vizinhos, nas igrejas, nos sindicatos, nas associações e outras agremiações. A soma das potencialidades individuais vai além de sua mera superposição, reza a lei da sinergia na Física, o resultado é surpreendentemente superior.

Muitos nos tornamos passivos, reduzidos ao papel de espectadores e consumidores, acumulando compulsões por comida, substâncias químicas, autoimagem, velocidade, jogo, alternando comportamentos de consumo. Enfim, ovelhas clientes obedientes, usuários de serviços, matrículas humanas com senha, número e carimbo. Rebanhos de ovelhas dóceis não formam comunidade.

Enquanto isso, a crise do Estado devasta a riqueza social, a “piscina cheia de ratos” de Cazuza agenciou e corrompeu empresas imundas e destruiu empregos com sua máquina estruturada e armada para drenar o esforço coletivo por meio de impostos e promover o crime. Como nos tempos do faraó.

É preciso constatar a dura realidade de que nem Estado nem Sociedade podem dar conta de nossas utopias e sonhos. E já estamos muito grandinhos para responsabilizá-los por isso. O aparato do Estado, por mais qualificada que seja a gestão de sua burocracia, não vai reconhecer nem respeitar a complexa demanda humana, em todas as suas dimensões.

A rede brasileira criminal de banalização do mal envolve políticos, empresários, pastores, banqueiros, marqueteiros, clones de Judas Iscariotes, com amplo potencial de traição. Venderam a utopia por 30 dinheiros. Beijo de Judas ou mordida de vampiro: farinha pouca, meu pirão primeiro.

Sem apostar na sinergia e na vida em comunidade, como soltar o grito de Aleluia preso na garganta?

Feliz Páscoa!

Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.

Mais artigos

Ansiedade, estresse e correria – entre Chronos e Kairós

A experiência da ansiedade só é “divertidamente” nos filmes da Disney. Na vida real, cobra um pedágio altíssimo e requer maturidade emocional e resiliência. É sintomático que a animação “Divertidamente 2”, do estudio Pixar, tenha atingido um estrondoso êxito e muitos...

ler mais

“Não espere ficar tudo bem pra ser feliz!”

Você já pensou o quanto de autorização pessoal pra ser feliz você se oferece? Quando é que, finalmente, você vai poder dizer: “Ah! Agora eu posso!” Se você ficar esperando estar tudo bem na sua vida pra poder celebrar, sorrir, curtir e agradecer, vai passar parte dela...

ler mais

Marca: Porto.

Há cerca de dois meses, deixei o Brasil e vim para a Europa, trazendo comigo a curiosidade de um estudante de marcas e estratégia. Foi assim que Porto me capturou, não só pela riqueza cultural, mas pelo seu posicionamento tão marcante. Este texto difere dos...

ler mais

Brasil, país dos influencers!

Não somos mais só o país do futebol ou do samba; somos, também, o país dos influenciadores e das redes sociais.  Atente-se aos dados: de acordo com relatório do Influency.me – 84% das pessoas contam com as mídias sociais no momento da decisão de compra (fonte: ODM...

ler mais

Consumo insustentável na sociedade do excesso

Recentemente, fui convidado pelo Instituto Multiversidad Popular, em Posadas, na capital da Província de Missiones, na Argentina, para falar para os alunos de curso de pós-graduação. A missão da “Multi”, como a instituição é carinhosamente conhecida, é difundir...

ler mais

junte-se ao mercado