Como criar uma seita em oito passos

out/2018

Há quase trinta anos que trabalho com grupos em organizações pelo Brasil. Uso os óculos teóricos da psicologia do trabalho e da antropologia para compreender e decifrar os problemas de relacionamento internos das tribos empresariais. Tenho observado uma atmosfera diferente de uns tempos para cá, me parece que a polarização do lado de fora se infiltrou na cultura organizacional e a arena digital está dando as cartas com seu onipresente WhatsApp, tensionando mais ainda as relações interpessoais.

Os danos são bem parecidos com o que constatamos nos grupos de zap de família: intolerância com diferença, palavras ríspidas e sarcásticas para quem ousa divergir, um tsunami de estereótipos, lacrações, emoções tóxicas, etc, com uma ressalva: grupos em empresas são equipes de trabalho e estas precisam produzir e bater meta.

Empresas não contratam profissionais de psicologia para reverter o clima ruim porque é mais bonito. Pagam pelo serviço especializado porque a polarização entre pessoas e áreas inviabiliza a comunicação sobre tarefas e, sobretudo, minam o terreno da boa tomada de decisão. Equipes briguentas, desintegradas e cindidas pelo maniqueísmo do contra não batem meta. Ponto. Estressam as  lideranças, atrapalham o senso de direção, diminuem a percepção de risco, abrindo os flancos para o fiasco e o prejuízo.

Psicólogos sociais e sociólogos dos EUA observaram ao longo de quase um século um fenômeno que foi batizado de pensamento de grupo, em inglês, groupthink, muito comum nestes tempos de confronto e dogmatismo do Brasil pré-eleições. Trata-se de uma espécie de surto coletivo por uniformidade que arrebata as pessoas que se reúnem num grupo e que se veem aos poucos na obrigação de declarar sua pertença e sua profunda lealdade. Pesquisadores norte-americanos (1) traduzem como “um modo de pensar em um grupo coeso por meio do qual as pressões para que haja unanimidade sobrepõem-se à motivação dos participantes para avaliar com realismo rumos de ação alternativos.”

O mundo empresarial conhece os riscos deste este estado de torpor concordista que acomete os grupos de trabalho, sabe que ele lança as cabeças pensantes em um arriscado transe que fulmina qualquer discordância e não consente o contraditório. Um sinal de que uma equipe está sob Groupthink é a ausência de crítica, de discussão, de debates, feedback e contraditório.

O objetivo é pavimentar uma coesão ilusória e imaginária entre os participantes que devem professar sua confissão de fé na crença comum, demonstrando fidelidade ao consenso do grupo. Pioneiro nas Ciências Sociais na Universidade de Yale, W. G. Sumner, no começo do século 20, já observava este comportamento chamado por ele de etnocentrismo, uma tendência do indivíduo de considerar o próprio grupo o centro de tudo e superior aos grupos externos e a seus membros.

Este fenômeno psicossocial tem se dilatado mundialmente e podemos dizer que vivemos na era das seitas. Oito são os sinais de que o Groupthink foi instalado em alguma equipe. Eles foram estudados e descritos por I. L. Janis (1982). São:

  1. Ilusões de invulnerabilidade. Com tamanha homogeneização, os grupos vão tender a se achar infalíveis e se expor a riscos irracionais. Passam a se atribuir um poder maior do que tem. Horror à crítica e à divergência.
  2. Ilusões de moralidade. Integrantes exibem uma crença inquestionável na moralidade superior inerente ao seu grupo, gerando propensão a ignorar as consequências éticas de suas decisões. O moralismo patético que assola nossos dias.
  3. Racionalização coletiva. Um pacto mórbido é celebrado entre os integrantes dos grupos no sentido de se atenuar alertas e negligenciar consequências.
  4. Estereotipagem do adversário. Clichês e rótulos preconceituosos são fermentados dentro de um grupo em “surto” de coesão imaginária e em seguida lançados na direção do grupo rival, com demonizações, teorias conspiratórias e truculência verbal: lixo é a palavra da moda, mas há outras como coxinha, golpista, mortadela, petralha, feminazi e tantas outras, sem a real avaliação do potencial do outro grupo. Estereótipos são generalizações equivocadas e induzem ao fiasco na avaliação das ameaças.
  5. Autocensura. Os integrantes recalcam e silenciam suas desconfianças e suspeitas a respeito das regras do grupo, tendo em vista a preservação do consenso celebrado. Será a tendência do próximo verão, no Brasil.
  6. Pressão sobre os dissidentes. “A maioria pode exercer pressão direta sobre qualquer integrante dissidente ou contrário a qualquer estereótipo, ilusão ou compromisso do grupo. ”, afirma D. Myers (3).
  7. Vigilância da mente. Um articulador do alinhamento da mentalidade grupal é destacado para operar a uniformização. Administradores de grupo de WhatsApp já andam exercendo este papel.
  8. Unanimidade aparente. Mesmo sustentando dúvidas particulares, os integrantes devem compartilhar sempre da fantasia de unanimidade em relação à decisão do grupo. E recalcar suas impressões.

Para Janis, este estado psicopatológico das equipes em conflito é gerador de análises de erro de lógica. Não parece a fórmula da criação de uma seita em oito passos?  Como  fenômeno social previsível, poderia sofrer influência externa de alguém, de uma consultor que desperte o grupo do transe e o persuada à decisão mais acertada. Mas sabemos que a ciência nem sempre consegue estancar aberrações nas escolhas humanas. E por falar em decisão, estou com uma dúvida, me socorram: qual deverá ser a cor de nossas roupas para o próximo Réveillon?

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1) Michener, H. A., DeLamater, J. D., Myers, D. J. Psicologia Social. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005.

2)  Janis, I. L. Groupthink. Boston: Houghton Mifflin, 1982.

3)  Myers, D.  Psicologia Social. São Paulo:MacGraw Hill-ArtMed, 2014

Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.

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