A potência oculta dos ritos de passagem

mar/2024

Vocês já repararam quantos ritos celebramos nos meses do verão? A temporada começa antes do Natal. Sagrados ou profanos, eles estão presentes nas tradicionais confraternizações que demarcam o fim do ano laboral, com os lúdicos “amigos-secretos”, típicos ritos “de endividamento e de reciprocidade”, no olhar dos antropólogos.     

Estão presentes na Noite de Natal e na festa dos Reis Magos, datas sagradas em torno do nascimento de Jesus, nas quais as trocas de presentes e congraçamento confirmam os “insights” de Marcel Mauss, autor do clássico “Ensaio sobre o dom”, que enxerga nestas trocas afetivas de objetos uma dimensão efetiva, pois fortalecem os vínculos entre os atores envolvidos. 

Após Natal, o rito em sequência traz nome francês – Réveillon – a  Virada do Ano, com suas vestes brancas, fogos de artifício, vinhos borbulhantes e bizarras simpatias. A data demarca a mudança do tempo social e consiste em festa profana. Mas o sagrado penetra de mansinho sob a forma de roupas brancas do Axé e oferendas de flores à Senhora do mar.  

Em fevereiro, chegamos ao maior dos rituais, o Carnaval, o rito arcaico cristão, instituído para demarcar o início dos 40 dias de jejum e penitência e dar adeus à carne (em Latim, carne, vale) que se transformou em um extenso rito de nivelamento social entre nós. É quando os brasileiros brincam de utopia social, fantasiados de iguais, suspendendo por alguns dias, o pesado karma da assimetria social, traço atávico e secular, promotor de violência e distopia, conforme escreveu Roberto DaMatta.   

Pessoalmente, amo os rituais e cerimônias, dentro ou fora do sagrado. Desde criança, ficava à espreita dos efeitos do rito, vigiando a sequência de gestos previsíveis nas festas de aniversário.    

O script do aniversário compreendia os abraços à chegada, a entrega dos presentes – de novo, o rito de endividamento -, seguido de brincadeiras. Bandejas, intactas, brigadeiros e olhos-de-sogra atentos, nada deveria ser tocado, tudo tinha seu tempo. Até soar a hora mágica de cantar os parabéns. Em círculo, ciranda em torno da mesa onde pontificava o bolo,  aniversariante a postos, à espera da ordem. Apagavam-se as luzes. Na penumbra, a chama da vela tremulava ao som do parabéns prá você….   

Com olhos de criança, o efeito do rito seria fruto do somatório de gestos teatrais. A mudança aconteceria por mera força mecânica ou magia. Afinal, para que mais se celebraria os ritos se  não operassem transformação?  

Aos poucos, minha crença infantil se desencantou ao ver meus amigos com os mesmíssimos defeitos anteriores aos seus aniversários. Julia, por exemplo, amiga do parquinho, continuou tão mandona e autoritária como antes de receber a Primeira Comunhão. Não mudou nada, nem pela Hóstia Consagrada. 

Convites de casamento, de festas de debutantes, de formatura, de funerais, etc., podem ser vistos como autênticas convocatórias à comunidade: onde estão vocês? É preciso que venham testemunhar nosso momento.   

Se nossa condição é de desamparo, como já dizia doutor Freud, é bom contar com a comunidade por perto na hora das transformações. Há mudanças do corpo, as passagens da vida, estes câmbios nos afetam. Sentimos medo e ansiedade à hora de passar pelo Portal. Há surpresas e incógnitas. Até Édipo teve que enfrentar o enigma da Esfinge ao ultrapassar o limiar. Na transição, somos desafiados com charadas e adivinhações.   

Portanto, venham, compareçam, sua presença nos ampara nos saltos qualitativos da vida.  Venham ver nossa mudança de status, nossa formatura, nos encorajar a desempenhar novos papéis. Venham ver nosso laço, nosso contrato amoroso e estejam por perto de nós na hora que vierem filhos, também na hora do luto, nos amparem na hora do adeus quando fazemos conexão com os que partiram, os amados anteriores, os ancestrais. Venham, nos consolar diante da finitude e nos recordar o verbo pertencer – assim na terra, como no céu. 

Os ritos de passagem são os que apresentam maior complexidade e potência. Com frequência são celebrados no universo da cultura organizacional. Eles vão além das religiões e se espalham nos numerosos micro rituais da vida cotidiana. Já facilitei, em diferentes empresas, workshops de mudança, seguindo os três passos desenhados pelo antropólogo Arnold Van Gennep, pioneiro no tema. É de sua autoria o desenho da estrutura tríplice dos ritos de passagem: o momento antecedente, a liminaridade e o depois da passagem. 

Há um século, este autor sistematizou os “princípios constantes dos ritos” e descreveu a etapa antecedente como de preparação, marcada pelo imperativo do despojamento, da purificação ou catarse. Em suas palavras, é o momento da assepsia das identidades pretéritas.  

A assepsia se dá pela separação do neófito, seu isolamento, acompanhado de jejuns, banhos rituais, abstinência, ingesta de ervas, etc. A regra é purificar para discernir entre o que deve ser deixado para trás e o que deve ser preservado. 

Hoje em dia, carecemos de assepsia de ansiedade, dispersão, barulho e aceleração do tempo. A retomada do silêncio é conditio sine qua non para a escuta da palavra, à carga de mistério presente nas palavras, seu grau de sacralidade. “Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. ”  Imagine ouvir este verso de Drummond declamado por Maria Bethânia. Um exemplo de reverência e sacralidade ritual. 

Há rituais de passagem que cobram um preço alto para demarcar a transição. Há inclusive os que cobram o pedágio da travessia sob a forma de sacrifício e desafio. E muitos exigem que o registro da passagem fique inscrito no corpo, sob a forma de cicatriz, ferida, mutilação e até escarnificações.  As inscrições no corpo servirão como dispositivos de alerta e vão lembrar o pacto feito na passagem. O novo integrante trará no corpo a memória da Lei, na bela expressão de Franz Kafka. As marcações vão servir à lealdade aos novos valores e à cultura que se abraçou. 

Como retomar a força oculta dos rituais? Não é à toa que muitos ritos perderam relevância e sentido. Será que é por isso que os ritos já não promovem mutações? Será que é devido ao seu uso abusivo, banal e mercantil, que os reduziram a mero entretenimento? Qual o potencial de transformação de ritos disponibilizados em linhas de montagem? 

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O conteúdo e opinião publicados neste artigo são de inteira responsabilidade do autor ou autora.

Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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