E Ivana virou Ivan: a força do querer diversidade
A telenovela da Rede Globo A força do querer trouxe a questão da diversidade sexual para o centro do debate. Glória Perez soube discorrer, com delicadeza e sensibilidade, a força do querer de Ivana em se tornar Ivan, um homem trans, promovendo o debate sobre a diversidade sexual e o pluralismo de expressões, em uma sociedade democrática. Despertou a ira da ala conservadora da sociedade, da militância reacionária e grupos religiosos, mas ao final captou a empatia de um público predisposto a reconhecer que há força em se querer a diversidade, sim senhor.
A diversidade humana sempre existiu e a história demonstra como foi difícil criar formas de convivência entre os diferentes. Em uma sociedade democrática, que implica liberdade e igualdade de direitos, como poderemos fazer valer a interação e integração entre os diferentes na diversidade?
Escancarada por toda parte, a diversidade se faz presente em todas as esferas da vida: social, cultural, política, sexual, econômica, jurídica, estrutural, ambiental, biológica, de gênero, de gostos, de raças, etnias, crenças, etc., alternando-se entre identidade e diferença. E a repetição da violência em se transformar diferença em desigualdade.
Além de abordar as descobertas e dilemas de Ivana (personagem da atriz Carol Duarte), que passou pela dramática transição de gênero ao longo da novela, também assistimos ao motorista Nonato (Silvero Pereira) na trama, trancado no “armário”, alternando como um transformista que se reconhece pelo nome de Elis Miranda. Também sua história gira em torno da identidade de gênero e dos altos custos psicológicos da empreitada singular. Ambos, para a biologia, continuam sendo mulher e homem, pois em todas as células de seus órgãos está inscrita a determinação do sexo dada pela presença de um par de cromossomos sexuais: XX ou XY. Os dois personagens Ivana/Ivan e Nonato/Elis nos permitiram acompanhar como a identidade de gênero vai além da identidade sexual e a rever obsoletas noções de normal e patológico, do certo e do errado, e a reconhecer o valor das diferenças, em um mundo cada vez mais compartilhado.
Por muito tempo, em diversos lugares do mundo, certas práticas sexuais foram consideradas como abomináveis, pervertidas, criminosas ou patológicas. A percepção mudou e a sexualidade humana passou a ser vista como uma possibilidade legítima de cada um. Ivana passou a tomar hormônios e se submeteu à cirurgia de retirada dos seios em busca de uma nova identidade corporal. Os seios femininos, com sua carga simbólica, representam um outro tipo de corpo com qual a personagem já não mais identifica ao seu gênero.
Muita gente sustentou que a telenovela promoveu a patologia e a imoralidade, houve boicote aos patrocinadores, afinal, foram muitos e muitos séculos de fermentação silenciosa do preconceito às diferenças. É este preconceito calado e dissimulado que se transforma em intolerância e truculência. Em machismo e homofobia. É o que nos leva a classificar e categorizar pessoas, produzir hierarquias e promover discrepantes atribuições de valor em relação aos outros.
Parte dessa reação se percebe nos discursos dos conservadores que acusam feministas e teóricos de gênero como sendo promotores de uma “ideologia de gênero”, que conspira contra a família e valores morais e quer “gayzificar” toda a juventude com a disseminação de suas ideias nas escolas. Mas não vou entrar nesta briga agora.
Do lado progressista há radicalizações e exageros, destaco a de subtrair o gênero nas palavras. Por exemplo, em lugar de meninO e meninA, só há meninXs, o que a meu ver é uma ingênua sandice. Dou mais valor ao despertar da sociedade que consegue reconhecer scripts de gênero repletos de sexismo sem sentido e caducos, caindo por terra, flagrando as relações de poder escondidas e transmitidas pela arte da performance.
Aliás a performance e performatividade são respeitáveis conceitos da Filosofia da Linguagem que revelam o quanto ela é geradora de realidade, o quanto o discurso molda, condiciona e performa as percepções, emoções e expressões da corporalidade.
A identidade de gênero seria produzida pelas sucessivas performances culturais com seus clichês de macho e fêmea, do que é de menino e o que é de menina, masculino e feminino. Foram séculos de reprodução maciça destes scripts que naturalizaram as diferenças sexuais, desde as cores rosa e azul ao incentivo no desenvolvimento cognitivo com bonecas e panelinhas para elas e bolas de futebol e carrinhos para eles, demarcando os campos e delimitando o espaço de cada gênero, reforçando uma lógica para a vida doméstica e focada na maternidade com cozinha, na penteadeira de Barbie e nos carros velozes e furiosos para os homenzinhos ao volante.
Mas se cair da bike, nada de lágrima, viu? Homem não chora!
Carlos Linhares
Colunista
Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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