Escolha escolher

mar/2020

No início do século XX, minha avó foi dada em casamento ao meu avô. Meu bisavô escolheu um marido para ela quando ainda era criança. Escolher um marido para meninas era uma prática relativamente comum em alguns lugares. O hábito foi caindo em desuso em grandes capitais, mas ainda se mostra presente em algumas cidades e culturas. Em um exercício de empatia pense a agressão que representa ter que viver e conviver ao lado de alguém que você não escolheu. Imagine ter que dividir a rotina, a mesma mesa, se relacionar diariamente com o outro sem ter motivos para um brilho nos olhos, paixão ou nem ao menos motivação. Consegue imaginar?

Tornou-se senso comum ouvir das pessoas que elas gastam mais tempo no trabalho do que com sua própria família. E, em boa medida, isso é mesmo verdade. Mas, será mesmo que podemos comparar um casamento arranjado ao nosso trabalho? Guardadas as devidas proporções, ouso dizer que sim. Veja: meu objetivo não é problematizar relações amorosas ou familiares e sim o espaço que damos para que familiares, mercado, empresas façam importantes escolhas no nosso lugar.

Do ponto de vista profissional, o equívoco geralmente começa na adolescência quando a maior parte das pessoas precisa definir a profissão a seguir. Imbuídos de boas intenções, muitos pais passam a dar orientações sobre as melhores carreiras, profissões mais fáceis ou bem remuneradas. A pressão as vezes segue com a perspectiva de que os jovens herdem escritórios, consultórios, clientelas preestabelecidas.  

Por outro lado, durante a vida acadêmica boa parte dos mestres e mentores também ocupam um papel de influenciadores.  São hábeis em orientar sobre as melhores práticas para ser escolhido pelas melhores empresas. Empresas estas que alguém nomeou como as melhores. Melhores sob quais critérios mesmo? O resultado deste conjunto de fatores costuma ser uma série de atalhos que vamos seguindo sem quase nunca avaliar se são ou não adequados ao nosso perfil, valores e objetivos de vida. Agimos também em nome da necessidade eminente de estarmos no mercado ou de pagar nossos boletos. Isso não é demérito, mas é preciso atenção.

Um trabalho realmente não é um casamento. Mas é uma união. Ambos são capazes de tomar os nossos dias, impor rotinas, criar hábitos e nos deixar tristes ou felizes, saudáveis ou doentes. Da mesma forma como hoje temos liberdade de escolher nossos parceiros, gostaria imensamente que todos tivessem a consciência de que podem escolher onde e de que forma gostariam de empreender o seu talento.

Reconheço que nem sempre é possível fazer as melhores escolhas. Todos somos vulneráveis a intempéries e necessidades diversas. O que não podemos é, como num casamento arranjado, nos acomodar, deixando que o tempo passe, a barriga cresça e a preguiça nos tome. Façamos a nossa parte de, por meio da autoconsciência, reconhecer o que faz o nosso coração bater mais forte e ir rapidamente atrás disso. 

 

 

Matéria publicada originalmente no Site Bahia Notícias na edição de 16 de novembro de 2019

Alessandra Calheira

Alessandra Calheira

Colunista

Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas, na linha de Cibercultura, pela UFBA; Especialista em Marketing pela ESPM e Publicitária pela UCSal. É sócia fundadora da Proxima e consultora para Gestão Educacional e Empregabilidade da Rede FTC. É ainda professora da Pós-Graduação da UNIFACS e colunista do Bahia Notícias.

Atuou como criativa e redatora publicitária quando foi laureada com um Leão no Festival Internacional de Cannes, com uma medalha no Clube de Criação de São Paulo, Top de Marketing da ADVB, entre outros.

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