O resgate pela resiliência: o caso dos Javalis Selvagens
Era o dia 23 de junho, o time dos Javalis Selvagens havia acabado a partida de futebol. Um almoço festivo os esperava na casa de um dos integrantes do time para cantar parabéns. Mas eles convenceram a Ake, o técnico do time, a darem um passeio de bike na direção das florestas para revisitar a caverna de Tham Luang Khun Nam Nang Non, em português, Grande caverna e Fonte de Água da mulher adormecida da montanha.
Planejavam passar apenas uma hora por lá nas grutas. Normalmente eles entravam uns bons quilômetros, já haviam certa vez atingido até 8 km, mas nesta data pretendiam ficar só uma hora.
No passado, muitas pessoas já desapareceram na caverna, ela fica perigosa quando a temporada de monções começa e só deve ser visitada entre novembro e abril. Fora deste período, ela deixa de ser inofensiva e pode ser inundada com até 5 metros de água e lama – que foi o que aconteceu. O time e seu técnico foram surpreendidos pela abrupta elevação do nível das águas e se viram forçados a avançar mais fundo, em busca de lugares altos e mais seguros.
Os convidados da festa de aniversário estranharam muito a demora dos meninos. E partiram para as buscas. Bicicletas, chuteiras e mochilas deles à entrada da caverna confirmaram o veredito: estavam lá dentro, presos. Começaram então as complicadas operações de resgate.
Para os moradores da província de Chiang Rai o espírito da caverna precisava ser pacificado. Eles preservam sua visão de mundo e decidiram se juntar aos familiares das vítimas para levar cestas de oferendas – frutas, incenso e velas – e pedir clemência ao espírito que protege a caverna. Recitavam orações, cantos e mantras, acendiam incensos e dobravam origamis.
Ao lado da rede espiritual, outra corrente se organizava sob a batuta de lideranças da elite da marinha tailandesa. Uma megaempreitada militar dava início às operações, reunindo sofisticados recursos tecnológicos e humanos. Cinco dias após o início das tentativas, chegam mergulhadores especializados em prospecção de cavernas. Vieram do Reino Unido, Bélgica, Austrália, países escandinavos e se juntaram aos voluntários socorristas de muitos outros países. Cabeças pensantes, especialistas, apoio tecnológico e financeiro: uma rede de cooperação e inteligência se formou para planejar e executar o resgate dos treze jovens.
Como, depois de 10 dias, ainda poderiam estar vivos sem comida? Como sobreviver naquelas condições? Quais as previsões da meteorologia?
O pequeno povoado de Mae Sai foi então invadido por 300 jornalistas, vinham de todo o planeta. A atenção do mundo estava dividida entre os jogos da Copa da Rússia e a torcida pela equipe dos Javalis. Foram alvo da empatia mundial. Uma central de apoio foi improvisada ao lado da entrada da caverna: barracas de preparo de alimentos, refeições simples, bebidas, até picolés – tudo fruto de doação. Nenhuma tarefa era considerada inferior, quando os banheiros do estacionamento apareceram sujos, as pessoas começaram a limpá-los, simplesmente. Carona grátis para os voluntários que precisassem subir e descer a montanha. As roupas sujas de lama das equipes de resgate voltavam limpas no dia seguinte, cortesia de uma lavanderia local. A beleza dos hábitos da cultura local, a arte do compartilhamento. O resgate dos javalis resgatou valores. Resgatou gestos que agregaram valor e ajudaram no sucesso da empreitada.
A morte de um voluntário ilustre, o atleta Saman Gunan, campeão de triátlon, mergulhador da Marinha tailandesa, por outro lado, trouxe medo e pavor. Em um mergulho de rotina para levar tanques de ar ao grupo na caverna, Saman ficou inconsciente, após ficar sem ar. E morreu aos 38 anos. Se para um atleta foi impossível, como os meninos fracos vão suportar?
O clima era ameaçador, o anúncio de mais chuvas e a elevação do nível de água reduziam margem de tempo. Uma tromba d’água destruiria qualquer chance de êxito. A chuva forte reduzia os bolsões de ar nas galerias, impedindo o acesso a partes estratégicas.
Dentro da caverna, os meninos javalis sofriam no corpo e na alma: ar rarefeito, oxigênio escasso, escuridão e alta umidade no ar. Mesmo acossados pelas águas, pelo medo e pela fome, surpreendiam ao técnico Ake por sua determinação em sobreviver. Conseguiram, usando pedras, cavar um buraco de cinco metros onde ficaram juntos e aquecidos. Como manter o controle emocional dos garotos naquele trauma?
Ake lembrou de lições aprendidas em sua experiência como monge budista, anos antes. E transmitiu as técnicas de concentração e de meditação. Este suporte incrementou a resiliência dos meninos que se revelou em atitudes concretas como domar o medo, sossegar a ansiedade, usar o mínimo de ar, poupar forças e permanecer parado, economizar energia física já que não havia alimentos, estavam fracos, apenas bebiam a água que escorria pelas paredes. Faziam jus ao adjetivo de selvagens, os javalis.
Helicópteros, equipamentos, veículos, geradores, bombas de ar, trajes de mergulho, bujões de oxigênio, sensores e radares, centrais de telecomunicações, logística, serviços médicos, etc., todo este aparato de tecnologia de ponta foi colocado a serviço dos líderes da operação, militares, socorristas, mergulhadores, etc., mas de que valeria todo este ostensivo arsenal sem o engajamento da comunidade, sem envolvimento dos voluntários, sem a empatia das pessoas movidas por seus valores e crenças? Qual seria o desenlace dos fatos sem a resiliência dos javalis?
Os dois mergulhadores britânicos que localizaram as vítimas após dez longos dias de buscas cegas em água lamacenta, revelaram um detalhe curioso do protocolo oficial de resgate. Recomenda-se que se use o faro, o nariz. Um deles confirmou: “- Quando atingíamos um bolsão de ar, subíamos à tona, gritávamos e cheirávamos. Naquele dia, no escuro, sentimos cheiro deles. Não se enxergava nada, mas sentimos o cheiro das crianças na caverna. Foi uma alegria imensa escutar: nós 13 estamos aqui! ”
O resgate obteve um bom desfecho: resgatou-se a eles e também a sensibilidade. O resgate dos javalis resgatou o olhar, o tato, a escuta e o faro. Nós estamos aqui.
Carlos Linhares
Com sólida formação interdisciplinar e longa trajetória em empresas públicas e privadas, de médio e grande porte, o professor Dr.Carlos Linhares atua no âmbito de Gestão de Pessoas, promovendo intervenções processuais, seminários, workshops, pesquisas e palestras tendo como foco as relações de Poder e Autoridade, as competências de Liderança, o desenvolvimento do espírito de equipe, as estratégias de mudança planejada, a Gestão da Cultura Organizacional, os Processos de Comunicação e a Gestão Positiva de Conflitos e a Negociação.

Carlos Linhares
Colunista
Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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