Mutações da “baianidade”
“A novidade veio dar à praia na qualidade rara de sereia, metade o busto de uma deusa maia, metade um grande rabo de baleia…a novidade era o máximo do paradoxo estendido na areia, alguns a desejar seus beijos de deusa, outros a desejar seu rabo prá ceia”.
E se a sereia da poesia de Gilberto Gil acima fosse a Bahia e sua ambivalente baianidade? Uma Bahia sob a forma de “paradoxo estendido na areia”, meio entidade mítica, mágica, mestiça e encantada e decantada e a outra metade, alvo de cobiça de muita gente desejosa de seu “rabo prá ceia”?
O paradoxo da sereia deusa maia com rabo de baleia pode nos ajudar a traduzir o velho conceito de baianidade – e celebrar o luto dos estereótipos que caducaram e não fazem mais sentido. Será que ainda tem alguma serventia se perpetuar uma generalização como “baianidade”? Tem sentido apostar nesta simplificação tosca em vez de encarar a extraordinária diversidade de culturas espalhadas em tantas e tão diferentes ecologias, em um território maior do que o da França, o Estado da Bahia?
O que os vaqueiros da zona da Caatinga têm a ver com os ribeirinhos sanfranciscanos? Ou os baiúchos da soja do oeste, de Barreiras e Luiz Eduardo Magalhães, têm a ver com o universo de cacau de S. Jorge dos Ilhéus e Itabuna? O que Porto Seguro e o povo do estremo sul tem a ver com os moradores do Recôncavo e suas cidades coloniais? Como ainda impor e reproduzir em todos estes rostos os clichês de Salvador? A Bahia são muitas antropologias sobre muitas e diferentes ecologias. Um morador do sertão não se identifica com a Bahia das vilas e cidades dos 900 km de litoral atlântico.
Falar de baianidade, carioquice, mineiridade ou gauchismo não ajuda muito, é uma referência vaga. Sim, existem ideias compartilhadas socialmente, difundidas por grupos humanos que pensam, sentem e se comportam em determinado ambiente cultural. Somos uma multiplicidade de traços com marcas diferentes: etária, profissional, de gênero, nacional, adesão política, grupos de interesse, etc., que não serão uniformizados por mitos e estereótipos produzidos há décadas atrás.
Muito frequentemente, velhos espectros de baianidade reaparecem com ares de quem quer de volta o controle da projeção de identidade. Outro dia, caminhando com amigos turistas, admirei as imagens projetadas nas duas fortificações militares do século XVII que abraçam a bela praia do Porto da Barra, em Salvador: no Forte de Santa Maria são projetadas imagens do mago franco-baiano, o gênio da fotografia Pierre Verger, e, no Forte de São Diogo, a baianidade fascinante das gravuras de Hector Carybé. A obra destes dois sumos sacerdotes da baianidade é projetada nas paredes externas das antigas edificações, mas infelizmente – faça o teste, perguntando a quem passa – quase ninguém sabe do que se trata e quem eles são. Ao lado de suas majestades Jorge Amado e Dorival Caymmi, integraram o quarteto dos evangelistas da baianidade e propagaram durante décadas a representação da terra da felicidade, da tolerância religiosa e racial. O marketing na era carlista soube captar e transformar tudo isto em valor.
Estes conteudistas do imaginário da baianidade se empenharam em positivar o sincretismo religioso, realçando o lado exótico do misticismo, a alternância entre o sagrado e o profano, a sensualidade desculpabilizada e a expressividade corporal do povo mestiço cuja culinária é marcada pelo ardor das pimentas e do dendê. Sintam a “baianidade” nesta letra de Dorival Caymmi: a marca da malemolência. A letra do samba não combina em nada com o espírito neoliberal, a ideia de foco e proatividade, a postura de empreendedor. Vejam vocês:
O samba da minha terra deixa a gente mole, quando se canta, todo mundo bole, quando se canta, todo mundo bole, quem não pode também bole, quem não sabe também bole, quem é moço também bole, quem é rico também bole. quem é pobre também bole, quem não gosta de samba bom sujeito não, é ruim da cabeça ou doente do pé.
Magazines dos anos 50 e 60 do século XX como Manchete e O Cruzeiro e constatavam as características do baiano: altivez, charme, ludicidade, despojamento, informalidade, criatividade, hospitalidade e autoritarismo.
O saudoso e irreverente antropólogo da UFBA, Prof. Roberto Albergaria sintetizou certa feita:
“… somos baianos quando nos convém, quando não convém, somos homem, mulher, ocidental, ser humano, vivente se for ecologista… A identidade baiana é sempre parcial e minoritária. Mas, no mundo da hipermídia, da indústria cultural, da cultura do entretenimento, ela é conveniente”.

Carlos Linhares
Colunista
Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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