Nova cultura da arte de viajar

fev/2017

Quem leu meu artigo anterior neste site vai lembrar da descrição que fiz sobre recente viagem ao Leste Europeu. Não farei desta vez menção a lugares, mas uma reflexão sobre o empreendimento de viajar. A meu ver, está em curso uma profunda mutação na antropologia da viagem.

A cultura da viagem é secular. Sempre aponta para prazer do encontro com o desconhecido.  Cenário, atores e rotinas diferentes decretam uma espécie de férias das máscaras sociais. Viajar com intensidade traz o dom da relativização e transmite o respeito pela diferença e diversidade de estilos de vida. Mitos, símbolos, rituais e narrativas de outros povos podem nos ajudar a lembrar que também somos míticos e simbólicos. Relativizar as coisas da vida renova nossas lentes e restaura algum sossego e, quem sabe, devolve a bem-aventurança do bom humor.

Se antes a viagem era privilégio de poucos e sinal de prestígio, hoje está muito mais acessível e popularizada. Sua logística se transformou totalmente e novas tribos, especialmente a dos mais jovens e menos renda, podem aproveitar voos low cost (baixo custo) como Ryanair, Vueling ou EasyJet e se hospedar em hostels e albergues, ou aproveitar ofertas do AirBnB.

Por três semanas pude compartilhar em vagões de trens, metrôs, ônibus, filas de ingressos, parques, cafés, etc, da companhia de jovens viajantes das mais diversas origens: asiáticos, europeus, africanos, latino-americanos, etc., observando seu comportamento. Idiomas, etnias, roupas, expressões diferentes, mas um traço comum: a relação com a tela do smartphone, onde jaz a fonte de todas as conexões, acessos e contatos nesta nova antropologia da viagem. Pude compreender que boa parte da paisagem já está nas nuvens e que se estabeleceu uma ponte definitiva entre o mundo virtual para a exploração do real.

Toda informação pode e deve ser obtida antes, na tela do celular. Juraria que alguns jovens viajantes, com fones de ouvido conectados nos celulares, estavam escutando música, mas me esclareceram que estavam procurando tradutores simultâneos, consultando GPS e guias virtuais, fazendo check-ins de voos ou acessando o Uber para deslocamentos. Tudo mudou neste campo e quem não acompanhou a nova tendência ficou para trás, juntamente com os talheres e a louça das refeições de bordo dos aviões da Pan Air.

O problema é que alguns destes jovens viajantes não erguem mais o olhar para a paisagem que flui na janela dos trens. E resistem em sair do seu mundo virtual e pisar no chão da nova cultura. Tive a impressão, observando alguns deles, que apenas se locomovem fisicamente, ancorados em seu lugar de origem, conectados com seu grupo de amigos virtuais, abrindo pouca fresta para contato real com o mundo a ser explorado. Sem interagir com o novo, a viagem se torna um exercício vão de deslocamento do corpo na paisagem. A cultura do novo lugar perde sedução e protagonismo. É triste dizer que o novo lugar serve apenas como mero pano de fundo para selfies de uma vida editada.

Aprecio a visita a mercados populares e mostras de artesanato e fico sem saber por que alguns destes jovens não se predispõem a visitar estes lugares? E por que não degustam comida típica do local em vez de ir religiosamente comer sanduíches no mesmo McDonalds? E como entender a compra de camisetas com a marca do Hard Rock Café, a mesma em toda parte do planeta, apenas com o nome da cidade que se está, supostamente, visitando?

As mutações na arte de viajar trouxeram muitos ganhos, pois incluíram muito mais gente e facilitaram processos. Mas muitas paisagens ficaram para trás. Carregar um ego aditivado atrapalha muitas vezes o acesso e a coragem de “partir” e desbravar o novo.  Os obsessivos registros de selfies parecem rituais da nova cultura onde os fotografados nem sequer reconhecem o significado e o valor daquilo que está por trás, compondo a cena.  O “pau de selfie” amplia ainda mais a distância entre as lentes e os corpos a serem retratados. Parece que é um acessório para registrar egos transbordantes. Tem gente que registra as viagens, mas como se não fazem a passagem para além de si?

Felizmente, muitos jovens aproveitam a viagem como experiência de despojamento e renovação do olhar. Uma boa viagem.

Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.

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