“Nunca mais eu caso!”

mar/2024

Toda pessoa recém-separada fala isso. 

 

Uma das mais frequentes realidades com as quais eu convivo no consultório é a de pessoas que se divorciam. 

Junto com algumas consequências desse novo status, está presente, sempre, a narrativa saturada do “casar, eu não caso nunca mais”.

Tem pouco tempo que umas duas amigas minhas se separaram e não foi diferente. E foram elas quem me causaram a vontade de poder falar mais sobre esse assunto.

Segundo Berger e Kellner (1970), o casamento pode ser definido como o movimento entre dois estranhos, portadores de um passado individual diferente, que se encontram e se redefinem… modificando a realidade presente, e, também, reconstruindo a realidade passada, fabricando uma memória comum, que integra os dois passados individuais.

O casamento tem um lugar privilegiado dentre as relações mais significativas validadas pelos adultos na sociedade.

E, apesar de falarem o contrário, os estudos científicos comprovam ser ele, ainda, o projeto central na vida dos indivíduos; a principal área de auto – realização social e base dos relacionamentos na esfera privada.

Porém, na contemporaneidade, já não é mais o casamento juridicamente sacramentado que delimita a formação de um casal. O caráter institucional do casamento cedeu espaço para diversos tipos de arranjos conjugais, que levam a uma nova introdução do si mesmo no sistema. 

Assim, o casamento passa a ser encarado como uma possibilidade, ou não, de ocorrer. Perdeu a exclusividade de iniciador da vida em comum, tornando-se uma etapa facultativa no percurso conjugal. A experiência do ‘test drive do morar junto’, como oportunidade de SE conhecer COM o outro, antes de assumir uma relação que se propõe como duradora, reforça a auto satisfação como mantenedora da relação, levando os casais a se readaptarem a essas novas formas e alternativas, movendo o casamento do âmbito sócio-cultural para o âmbito afetivo, onde a felicidade individual de cada membro é o termômetro dos casais.

A família contemporânea é, hoje, concebida como uma família em mudança, na qual o elemento central não é mais o grupo reunido, mas sim os membros que compõem a família, numa alternância entre o EU SOZINHO e o EU COM, em que preza-se pelo pertencimento, mas também pela individualização, pela autenticidade e fidelidade a si mesmo. 

A família nunca teve tanta importância como agora: cada um ajuda o outro a tornar-se ele próprio.

A questão central que deve ser repensada é a crença, ainda presente, de que cabe à família conjugal preencher um vazio e responder às necessidades afetivas e sociais dos indivíduos!

É atribuída aos parceiros a obrigação de preencher necessidades afetivas e sexuais que, anteriormente, não eram concentradas somente na relação conjugal.

O número de divórcios aumentou, porém, o número de casamentos também! O que comprova que o casamento não deixou de ser buscado, mas sim, as pessoas já não se mantêm insatisfeitas por muito tempo dentro das relações conjugais, buscando novas experiências conjugais, o que fez com que a taxa percentual de recasamentos também aumentasse.

Na contemporaneidade, “é preciso ser 1, sendo 2” (FÉRES-CARNEIRO, 1998). Temos que tomar consciência de que existem num casamento uma dinâmica própria do casal, que envolve 2 individualidades e 1 conjugalidade. É primordial aprender a ceder e a se renovar sem perder a identidade. Cada casal deve criar seu modelo único de ser casal!

A diversidade e a flexibilidade tornaram-se características inseparáveis na formação de novos casais, mas, na prática, o que realmente muda é que o final de um relacionamento passa a não ser mais visto somente como um final, mas também como um processo. Muitas vezes um processo que levará ao início de uma nova experiência conjugal, tão difícil de ser vislumbrada por quem acabou de finalizar uma relação de casal, e tem ainda esse luto para elaborar.

Estudos comprovam que, no Brasil, 1 em cada 4 casamentos culminam em divórcio. Dentre suas causas estão:

descompasso de alguma ordem entre as partes; distância cultural/intelectual; conflitos sexuais; ausência de paixão; falta de projetos comuns; Infidelidade;

hábito de dedicar muito tempo ao trabalho; falta de organização do tempo: lazer/família/ programas de casal ou intromissão de familiares no convívio do casal.

Desde que o casamento assumiu o âmbito afetivo, cada cônjuge busca a felicidade individual como o grande aspecto mantenedor das relações. Quando as expectativas baseadas nos sentimentos da proposta da relação não se sustentam com o tempo, uma das partes assume a decisão pelo divórcio, por se sentir mais preparado, por reconhecer que existe o casal, mas já não existe o casamento, e alguém tem que tomar providências sobre isso, ou até por ter sido movido pela falta de coragem da outra parte, em reconhecer que já não deseja mais estar casado, e assim, garantir a sua autonomia. 

No Brasil, 71% dos casos de divórcio são requeridos pelas mulheres. Estudos comprovam que, diante do término da relação conjugal, as sensações entre homens e mulheres se diferenciam.

Geralmente, a mulher se casa quando deseja validar sua relação amorosa, enquanto o homem o associa à possibilidade de constituição de uma família.

Assim, com a separação, as mulheres terminam enfrentando um processo de desilusão, mágoa e solidão, enquanto os homens assitem seu ‘projeto família’ ir por água abaixo, sentindo-se frustrados e fracassados. Essas sensações diversas aparecem no momento em que se vêem levados à reconstrução da sua identidade.

O luto pelo termo é elaborado por cada gênero com suas especificidades. Ambos experimentam a dor, mas enfrentar a novidade da solidão é a maior dificuldade, mesmo que valorizem a liberdade como uma oportunidade positiva.

Independentemente de quem tomou a decisão de terminar o relacionamento, quando o luto, finalmente, começa a ser processado, e essa nova realidade, que foi assustadora no início, torna-se, então, a única realidade que deve ser enfrentada, as mulheres passam a sentir uma sensação de alívio, geralmente entendendo que não vale a pena manter um relacionamento que não as fazem mais felizes, despertando um sentimento de autoestima, e, amorosamente tornando-as mais exigentes. 

Já, os homens, ao associarem o casamento à família, geralmente têm muita dificuldade em ficar sozinhos e entrar em contato com os seus sentimentos, desenvolvendo uma maior tendência para se casar novamente.

Assim, é muito comum que o gênero feminino exponha, em alto e bom tom, que ela nunca mais se case, enquanto o macho procura refazer o seu “projeto de família”, experimentando mais rápido o que as mulheres tanto temem. 

O medo feminino de investir novamente em um relacionamento amoroso que pode não dar certo, é o que guia o palco do luto feminino pós-separação, e acaba se apresentando maior do que a vontade de investir em ser feliz novamente.

São tantos medos! Medo da solidão, medo da instabilidade, medo da insegurança, medo da inadimplência e medo de amar novamente. Amor esse que, na maioria das vezes, quando termina, é de uma forma mal agradecida: termina só de um lado, porque um desacelera antes do outro e cada um vai com sua dor pro seu canto. 

Para quem rompeu, não é garantia ser um processo mais fácil, porque romper requer coragem e sustentação de uma decisão em que não só a parte ruim da relação vai embora, mas também a parte boa, que envolve, muitas vezes, a perda do convívio com alguém que se tornou seu melhor amigo, que conquistou sua confiança e que te garantia estabilidade. 

Para quem se sentiu dispensado, a pior parte é o processo de definhar, que às vezes acontece, e que se torna visível, público, e as pessoas comentam: “- Nossa como o cara acabou depois da separação! De qualquer forma, a separação fere a alma, por isso é considerada por muitos autores como “um luto na vida”!

Como parece uma violência, numa traição, alguém ter decidido que não dava mais pra viver com a gente, o indivíduo entra num processo inconsciente de negação de qualquer outra possibilidade de viver tudo novamente, afinal, a sensação inicial é de que todo o investimento foi em vão. 

Nessa fase do luto, qualquer atitude de romantismo entre os casais anônimos que fazem parte do cotidiano da vida é vista de forma crítica; qualquer música que toca passa a ter sua letra interpretada; e é difícil segurar as lágrimas e as recordações. 

Só depois de processado o luto é que se consegue pensar no quanto a relação deu certo enquanto durou. Chega a fase da aceitação, da neutralidade, que evolui pra uma certa indiferença sobre o poder daquela pessoa sobre você, e aí não é preciso mais evitar de se encontrar; não há motivos para se arrumar todo para, caso se bata com o ‘ex’ na rua, ele confira que você superou, nem precisa ficar esclarecendo pra todo mundo que pergunta, o quanto você está bem.

É nesse momento que você começa a acostumar com uma certa formalidade e distância entre aqueles que eram tão íntimos: vocês dois, e, assim, se redescobre, e começa a olhar para as muitas oportunidades que chegam na sua nova etapa de vida, em que a coragem volta a fazer parte do seu repertório e que, sem muito planejamento, você nem havia percebido o quanto já estava pronto para uma nova relação, podendo se ver, surpreendentemente, apaixonado outra vez, fingindo um pouco de resistência, mas não conseguindo fazer tão diferente do que havia planejado.

A maioria dos casos de recasamento que chegam ao meu consultório não ocorre da forma tradicional como foi o casamento, mas com novas configurações, nas quais um namoro evolui pra uma constância de noites dormidas na casa de uma das partes, e, de repente, vai surgindo uma peça de roupa; um ou outro objeto de higiene pessoal; uma parte do guarda-roupa é cedida; as despesas de mercado começam a ser discutidas e divididas e, quando menos se espera, um já se mudou pra casa do outro com a desculpa (que se dão) de que estavam gastando mais se mantendo em casas separadas.

São as famosas “desculpas protetoras” que os separados assumem pra si mesmos como forma de não se sentirem tão vulneráveis: mecanismos de defesa! Daqueles que não se assumem casados, mesmo já vivendo um casamento. 

Criam novas configurações e as chamam muitas vezes por qualquer outro termo: “moramos em casas separadas”; “vivemos juntos”; “moramos na mesma casa, mas em quartos separados”, “dividimos o mesmo teto e as despesas, mas não somos casados”, “união estável”… como se, na prática, nenhum deles se configurasse como tal.

O que sei é que durante a minha carreira como psicoterapeuta, já estive presente em muitas cerimônias de recasamentos, daquelas mesmas pessoas que diziam: “nunca mais vou casar!”.

Então, só me resta dizer às minhas duas amigas, com plena convicção: “- Vocês não serão as primeiras, nem serão as últimas! E eu estarei lá, não pra lhes lembrar dessa fala, mas pra lhes abraçar e lhes dizer que eu acredito que vocês podem tentar novamente, porque, assim como vocês, eu também só consigo estar onde, e com quem, exista amor, principalmente, amor próprio”.

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O conteúdo e opinião publicados neste artigo são de inteira responsabilidade do autor ou autora.

Sinara Dantas Neves

Sinara Dantas Neves

Colunista

@acuradoraferida
Doutora e pós doutoranda em Família na Sociedade Contemporânea (UCSaL-BR/ ICS- Universidade de Lisboa – PT);
Mestre em Psicologia (USP); Psicoterapeuta sistêmica (ABRATEF 206-BA); Professora universitária há 23 anos;
Pesquisadora da Conjugalidade; Escritora; Palestrante;

Mãe, amante da sua profissão e apaixonada por gente!

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