QUEM É VOCÊ NA RELAÇÃO? O prato ou o equilibrista?
Em tempos líquidos de Bauman, eis que, na vida amorosa, verificamos pessoas fadadas a serem equilibristas ou pratos: quer descobrir qual lugar você ocupa?
Ex-combatente da 2a Guerra Mundial, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman discute a fragilidade das relações humanas, frisando o fato de que “as relações escorrem pelo vão dos dedos”, em que a insegurança é parte estrutural da constituição do sujeito pós-moderno. O amor é mais falado do que vivido, e nada é para persistir. Difícil é algo, hoje, que consiga permanecer e se tornar verdadeiramente necessário. A profundidade das relações foi perdida e, então, vivemos tempos de angústias secretas. Assim, os relacionamentos apresentam-se efêmeros, descartáveis, transitórios, e, cada vez mais, convivemos com um sentimento, em que, parafraseando Bauman: “o corpo se inquieta e a alma sufoca”.
Nessa sociedade, marcada pela ansiedade, até o medo não escapou da liquidez e tudo pode ser desconectado, deletado e bloqueado, sejam amigos ou amores. Ganhamos muitas ferramentas de comunicação, que nos apresentam a mais e mais pessoas. Nos tornamos exigentes demais para coisas que nem podemos oferecer e fazemos das oportunidades de afetividade uma roleta russa.
Certo dia, estava na mesa de um bar, gozando de um happy hour, num desses points de paquera da minha cidade, quando, naturalmente, chegou até mim a declaração de um amigo sobre estarmos vivendo fadados ao que ele denominou de “teoria do prato”. E, de lá, prá cá, pensei em tornar este conhecimento, de senso comum, conhecido, já que não passei um só dia sequer sem pensar nisso.
Pois bem, lembram daquele espetáculo circense dos pratos equilibrados em “paus”? O equilibrista dos pratos, no caso, somos nós, seres humanos contemporâneos, porém, os pratos também podem ser qualquer um de nós, ainda que desavisados! O que meu amigo quis dizer é que, no mundo da paquera contemporânea, em que se comprova uma inabilidade de se experimentar profundamente o que nos chega, muitas relações começam e terminam sem comprometimento nenhum.
São tantas opções de pessoas disponíveis, e, graças à discrepância entre a quantidade de homens e mulheres solteiros, uma grande quantidade de possibilidades, que, meio que sem planejamento, nos vemos na condição de pratos por aqueles que tentam manter os “paus” em movimento, para garantir a quantidade.
O papel de equilibrista dos pratos é ocupado por aquelas pessoas que estão cheias de opções de paquera, mas que não conseguem, nem desejam, ter que optar por alguém, e, assim, ficam apegados a todas as pessoas que decide colocar como prato. É preciso habilidade para manter os “paus” balançando num mesmo ritmo, para que nenhum prato se desequilibre.
Mas, “como?”, você pode estar se perguntando. Ora, às vezes uma simples mensagem de “bom dia” copiada e enviada a todos os pratos, ou um “ei, sumido(a)” que chega de repente, ou uma ligação num sábado de madrugada, funciona como combustível para manter alguém como prato. Esses estímulos são, como explicava meu amigo, “o pau”, que, movimentado, mantém o prato girando. Os pratos são as pessoas que se contentam com esses estímulos e se aprisionam nesse lugar, jurando sentirem algum prazer, nada comparado ao prazer sentido por aquele que mantém o balanço dos paus, com um repertório infinito de combustíveis, para dar conta de muitos pratos.
A grande mudança de postura entre o gênero feminino da pós-modernidade é que, na modernidade, seria inconcebível admitir que o papel do equilibristra de pratos poderia ser desempenhado por uma mulher. Elas não só estão, também, ocupando esse lugar, como demonstrando habilidade em manter vários homens na condição de pratos, sustentados por uma bagagem de artemanhas tão eficazes quanto as dos homens, que ainda têm dificuldade de pensar que podem estar ocupando esse lugar: de pratos.
Não é orgulho excessivo viver a pós-modernidade tomando a precaução de não ocupar esses lugares. Os dos pratos, por exemplo, deixam de existir, quando o equilibrista se envolve com alguém que sabe o que quer e o que merece, que deseja alguém inteiro, por ser inteiro, e não se contenta com alguém pela metade. Esse tipo de pessoa não se acomoda no lugar de prato, e, também, não se sente vaidoso no lugar de quem equilibra. Isso: vaidoso. É assim que se sente a pessoa que consegue atrair muitas outras.
Cheio de possibilidades e vazios de essência.
Na verdade, o que se verifica nesse universo líquido são pessoas que até se submetem a esses papéis: de equilibrista ou de pratos, para garantirem sexo, ou por acreditarem que este seja o primeiro estágio (inevitável) de algo que vai virar um namoro, mas, que, na verdade, sonham mesmo é em encontrar quem os salve deles; quem os resgate desse aprisionamento que estão e fingem para si mesmos não sofrer de angústia. A cada encontro casual soma-se a comum sensação do “vazio do depois”, mas, enquanto elas não reconhecem o seu próprio poder, elas se submetem. E, assim, fica cada vez mais difícil atrair um alguém para manter uma relação mais profunda, já que o campo mórfico fica comprometido, sugando a energia que poderia estar sendo utilizada para outro fim.
Como não há observação pausada do que experimentamos, fotografar, filmar, mostrar, comentar, curtir, comprar e comparar continuam sendo os verbos mais comuns da pós-modernidade, em que o que mais importa é poder descrever aos demais o que se está fazendo. As relações começam sem contato algum, e muitas vezes terminam antes mesmo de começarem, porque já surgiu uma opção mais atraente, que me faz, ao primeiro sinal de descontentamento, buscar o próximo. As pessoas ficam vulneráveis para garantirem o pouco que o outro possa oferecer, e se afastam do que realmente desejam para suas vidas amorosas.
Não se sabe mais o que se merece, o que se quer, nem que lugar se deve ocupar.
Mas, o que não se pode deixar de lado é o que diz Carlos Drummond de Andrade: “Dentre as piores formas de mendicância, a pior que existe é a do amor humilhado”. Todo nós merecemos alguém que nos encare como alguém muito especial! Afinal, você mesmo não se sente especial? Foque e vá em busca de alguém inteiro! Mas, para isso, você tem que se permitir estar inteiro também.
Então, tá fazendo o quê, se deixando ocupar, ainda, um desses lugares?
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Sinara Dantas Neves
Colunista
@acuradoraferida
Doutora e pós doutoranda em Família na Sociedade Contemporânea (UCSaL-BR/ ICS- Universidade de Lisboa – PT);
Mestre em Psicologia (USP); Psicoterapeuta sistêmica (ABRATEF 206-BA); Professora universitária há 23 anos;
Pesquisadora da Conjugalidade; Escritora; Palestrante;
Mãe, amante da sua profissão e apaixonada por gente!
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