SEPARAÇÃO não é um BICHO PAPÃO (não deveria ser)
A lei do divórcio (6.515/1977), sancionada em 26 de dezembro de 1977, foi responsável por mudanças profundas na sociedade brasileira. Antes dela, o casamento era pautado pelo vínculo indissolúvel, e, por isso, muitas pessoas se mantinham juntas, mesmo quando insatisfeitas com a relação. Existiam muitos casamentos em que, na verdade, só restara o casal, e quase em nada, a relação. Como consequência, convivemos com uma geração de filhos comprometidos, resultado de modelos conjugais disfuncionais, o que explica uma parcela de jovens que já não coloca o matrimônio como um componente almejado no seu ciclo vital.
Hoje, no Brasil, a cada 3 casamentos, 1 termina em separação (IBGE). O marco na possibilidade de dissolução oficial dos casamentos gerou um movimento de reconstrução da vida conjugal, em que os dados comprovam que, cada vez mais, pessoas divorciadas recasam, pelo entendimento de que o que representa o êxito de uma convivência amorosa não é mais o tempo que o casal tem junto, mas sim a qualidade do vínculo.
Então, precisamos desmistificar a crença que se espalhou acerca do “casamento ser uma instituição falida”. Não! As estatísticas somam os índices de 1ª experiência conjugal com os de recasamentos, logo, fica comprovado que, mesmo com tanta gente descrente, de forma geral, o casamento continua tendo um lugar privilegiado dentre as relações mais significativas validadas pelos adultos na sociedade.
Entretanto, nas últimas semanas, presenciou-se uma comoção diante das notícias de separações conjugais de personalidades brasileiras, que deixa claro que, apesar de instituído judicialmente, o divórcio ainda precisa ser aceito culturalmente.
É como se estivéssemos enfrentando um movimento reacional como o que existiu na época da institucionalização da lei, em que bancadas religiosas argumentavam o risco de acabar com a instituição família. Só que, dessa vez, o que ficou escancarado foi o mal estar social diante do confronto com suas próprias projeções e expectativas sobre os casais.
Tem sido assim: nenhum casal fica indiferente à uma separação alheia de outro casal que estime ou admire. Só quem é casado sabe as renúncias e esforços inerentes à vida a dois, então, quando alguém decide findar a relação, escancara a fragilidade do laço amoroso, chacoalhando quem é casado a olhar pra dentro da sua própria relação. Então, quem está com a relação agonizando, fica amargurado, e quem ‘se escolhe todos os dias’ utiliza essa experiência para investir, ainda mais, no vínculo.
Esse movimento é compreensível se pensarmos que a cada casal formado, concomitantemente se constrói um apego social à uma identidade conjugal, fruto de muitas projeções. A comoção é fruto de um entendimento errôneo em interpretar como fracasso aquilo que faz parte da trajetória de qualquer relação conjugal: a possibilidade de separação, sempre se dá, seja por morte de 1 do par, ou por decisão de término.
E foi a Lei do Divórcio que possibilitou aos casais legitimarem suas decisões sobre seu vínculo amoroso, seu futuro e suas novas possibilidades de realizar novas escolhas, capacitando-os a se tornarem fiéis aos seus sonhos e leais aos seus cônjuges. Afinal, lhes foi dado o direito de escolha, a partir do momento em que o Estado foi retirado do centro das suas decisões pessoais.
Então, agora, depois dessa conquista, não podemos permitir que nenhum movimento social defina os rumos das nossas relações de amor. Não cabe mais, alguém pensar em se separar e ficar travado no famoso “mas o que os outros irão pensar?”.
É urgente a necessidade de esclarecimento de que o casamento ainda é visto como uma principal área de auto-realização social; seu caráter institucional cedeu espaço para diversos tipos de arranjos conjugais. Mas, independente de qual o modelo de conjugalidade que você e o seu par amoroso adotaram, por conta da identidade conjugal, e das expectativas sociais que se formam em torno dela, ainda é difícil conceber como aceitável culturalmente, o divórcio, mesmo que após 46 anos de sancionado: as pessoas se colocam como se não conseguissem conceber “Maria” sem “João; ou “João” sem “José”; ou “Maria” sem “Ana”…
Já imaginaram o quanto devemos honrar os nossos ancestrais que vivenciaram experiências de separação conjugal em épocas mais vorazes do que esta, que vivemos? Quantas pessoas foram praticamente proibidas de andar com filhos de pais separados? Quantas mulheres sofreram violência e abusos por terem tomado decisões de separação? Quantas famílias se mostraram envergonhadas perante o parente que assumia ter se divorciado? Quantos sofreram dificuldades na continuidade da vida amorosa? Quantas crianças tinham pesadelo com os pais se separando, por acreditarem que seria uma tragédia maior do que a de presenciarem as discussões dos pais? E quantas se sentiram responsáveis quando ocorria a separação? (Escrevo no passado, por opção, para não estimular a perpetuação de nada disso!). E quantos, tantos, mantém seus vínculos adoecidos por medo desse enfrentamento, ou por terem se prometido não causar aos filhos dores semelhantes, já vividas na infância?
Ciclos se encerram, não necessariamente por uma derrota no investimento ao vínculo, mas os casais ainda sentem como uma incompetência relacional, uma derrota pessoal, símbolo das suas incapacidades.
Por que será que os casais não conseguiram pensar que estar junto passa a ser uma decisão de escolha do par e o que acontece quando eu não consigo aceitar a escolha do casal alheio?! Ninguém, além dos pares em questão, consegue alcançar o que é melhor para um outro casal!
Duas pessoas podem decidir terminar como forma preventiva do respeito e da admiração, antes que se machuquem mais; podem reconhecer que não são mais os mesmos, e que querem se reencontrar com partes suas que, no vínculo, não conseguem identificar; podem reconhecer que estão juntas apenas pelo pânico do julgamento moral, e, a partir da separação, se libertarem de ciclos abusivos, salvando aos dois, como um grito de misericórdia, em que 1 assume a decisão pelos 2; dentre tantas outras justificativas que ilustram o fechamento de um ciclo, que ainda é mais aceito, socialmente, quando se refere à viuvez.
Que tal se a nova comoção social girar em torno de se enxergar a oportunidade de assistir pessoas adultas tomarem as rédeas de suas vidas, enfrentando os preconceitos e julgamentos, carregando seus medos, gratos pelas experiências compartilhadas a dois, mas, indo na direção de um futuro incerto, conscientes de que esgotaram as chances de se sentirem felizes, satisfeitas e/ou realizadas na experiência conjugal que tiveram?!
É preciso desmistificar o divórcio!
Não deveria, mais, ser um bicho papão.
E o que você está fazendo para isso?
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O conteúdo e opinião publicados neste artigo são de inteira responsabilidade do autor ou autora.
Sinara Dantas Neves
Colunista
@acuradoraferida
Doutora e pós doutoranda em Família na Sociedade Contemporânea (UCSaL-BR/ ICS- Universidade de Lisboa – PT);
Mestre em Psicologia (USP); Psicoterapeuta sistêmica (ABRATEF 206-BA); Professora universitária há 23 anos;
Pesquisadora da Conjugalidade; Escritora; Palestrante;
Mãe, amante da sua profissão e apaixonada por gente!
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