Seriam os azulejos portugueses as primeiras mídias do Brasil?
Fico com o coração partido quando vejo a deterioração dos painéis de azulejos do claustro do convento de São Francisco, no centro histórico de Salvador.
Quem nunca ouviu falar da igreja de ouro de S. Francisco no Pelourinho? Ela fica entre o convento dos frades franciscanos e a Ordem Terceira, um complexo que reúne a maior extensão de parede azulejada do mundo, depois de S. Vicente de Fora, em Lisboa. São precisamente 54.936 mil azulejos em franco estado de decomposição. Destes 55 mil azulejos, apenas cinco mil decoram a igreja e estão em salões protegidos. Uma imensa parte deste patrimônio está em risco. Virando pó, carcomida pelo tempo.
Azulejos são mais do que peças de cerâmicas monocromáticas em tom de azul, pregadas nas paredes dos edifícios antigos. Azulejos são mídias de outros tempos, são pen drives e cds dos séculos passados. Foram mídias de propagação da fé.
O nome azulejo não vem da cor azul e sim de termo do mundo árabe, azuleicha, que quer dizer pedra polida. Estudiosos discutem se surgiram no antigo Egito, Assíria, Pérsia ou é fruto da cultura árabe. A arte azulejar circulou intensamente entre árabes, que a introduziram na Península Ibérica em torno do séc. 8. Há evidências de imenso avanço técnico nesta época, com aplicação de camadas de vidro que davam um brilho especial. Os painéis de azulejos nas paredes seriam substitutos de tapetes em regiões litorâneas, com mais umidade.
As inscrições de temas da fé islâmica são observáveis nas artísticas caligrafias estampadas na superfície dos azulejos mais antigos. Formas geométricas e figuras vagamente assemelhadas a plantas – os arabescos – eram as únicas possíveis de representação, já que o Alcorão veta firmemente a reprodução de figuras humanas ou de animais, ação reservada a Alá.
Com a reconquista da Ibéria pelos cristãos, os antigos artesãos muçulmanos, donos da técnica, permaneceram produzindo as peças, introduzindo um estilo chamado mudéjar. Os mudéjares, nome dado pelos castelhanos aos mouros assimilados, pagavam impostos e viviam em paz na península reconquistada. Mas a clientela cristã não perpetuou as restrições da tradição arábico-islâmica e o imaginário bíblico passou a ser transmitido na arte e técnica azulejar.
Deixa de ser do mundo árabe e passa a ser suporte midiático para a difusão da piedade católica e da cultura europeia. Com a pressão ideológica da Reforma Protestante, que se disseminou graças à invenção da imprensa de Gutemberg, os azulejos passaram a ter um papel mais relevante do lado Católico: passou a servir de “texto” para mensagens piedosas e para a difusão dos preceitos do Concílio de Trento e da Contra a Reforma.
O azulejo adquiriu cidadania portuguesa em meados do séc 16 e aos poucos adentrou o ambiente eclesiástico, se misturando com a talha dourada e com a madeira negra, produzindo um resultado decorativo fascinante. Além de fazer parte das “mídias” de propaganda fidei ou Propagação da Fé ele também fez sucesso nos ambientes sacros, migrou para as residências e praças, adornou fachadas de casas, chafarizes, palácios e se transformou em peça de decoração.
Na capital política e econômica da América Portuguesa, a cidade de Salvador, terceira maior arrecadação de Portugal no século XVIII, centro mercantil considerado o Empório do Ocidente, a Ordem Franciscana inaugurou a igreja e convento em cujo claustro está instalado o Theatro Moral da Vida Humana e Toda a Filosofia dos Antigos e Modernos, um conjunto de trinta e sete painéis com cenas emblemáticas baseadas na filosofia de Horácio, pensador romano de antes de Cristo. Os painéis de azulejo trazem entidades pagãs da mitologia greco-romana reproduzidas a partir de gravuras do artista holandês Otto van Venius. É uma obra de valor incalculável e prodigiosa.
As cenas alegóricas baseadas na Emblemática Horaciana e sua “doutrina fundada no temor de Deus e no conhecimento de si mesmo” são absolutamente extraordinárias. Eles já se encontram no limiar da destruição. Os painéis foram instalados no guardianato de frei Boaventura de São José no ano de 1746-1748, segundo o Livro dos Guardiães do Convento, e hoje, devido a uma infiltração de água no solo, as peças estão se soltando. Vamos fazer uma campanha para salvar este legado!
Eles estão se deteriorando e necessitam de nossa intervenção urgente. Muita gente sente afeto pelo azulejo português, por sua carga de poesia e simplicidade. Pequenos pedacinhos de cerâmica onde toda uma história está compactada. Deixar se esfarelarem estas preciosas mídias no complexo do São Francisco é o mesmo que permitir a demência tomar conta de nossa memória. Vamos salvá-los!
Carlos Linhares
Colunista
Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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