Consumo insustentável na sociedade do excesso

jun/2024

Recentemente, fui convidado pelo Instituto Multiversidad Popular, em Posadas, na capital da Província de Missiones, na Argentina, para falar para os alunos de curso de pós-graduação. A missão da “Multi”, como a instituição é carinhosamente conhecida, é difundir conhecimento e práticas no campo da Educação Ambiental, Agroecologia, Ecologia Urbana, Horticultura orgânica e técnicas sustentáveis.  

Os alunos do curso “pós-grado”, docentes em redes públicas e privadas, são educadores desejosos de aprofundar estudos em torno da preservação do Meio Ambiente e sua sustentabilidade. Faz parte da formação amadurecer ideias e elaborar argumentos consistentes sobre consumo consciente e também saber lidar com a ideologia negacionista que tripudia da crise climática, resiste à mudança de hábitos e se mantém indiferente em relação à destruição do meio ambiente.  Como dialogar com quem não acredita em aquecimento global? Como mudar esta mentalidade e pensar juntos em uma educação para o consumo sustentável? 

Em seu livro “Vida para Consumo”, do sociólogo Zigmunt Bauman, diferencia consumo, uma prática individual e natural, comum a todos os seres vivos e de todas as espécies, de consumismo que, em suas palavras, “é um atributo da sociedade”.  Um sinal negativo do consumismo no momento presente é o crescimento da cultura do excesso que ameaça a vida das espécies e os ecossistemas.  

Para o filósofo teuto-coreano Byung Chul Han, autor da Sociedade do Desempenho, o traço marcante de nosso tempo é o casamento do capitalismo de plataformas com a tecnologia digital. Consequência desta união, o mercado se diluiu por todas as partes, passando a ocupar os domínios da Nuvem Digital que paira sobre nossas cabeças. Onipresente, diluído no ar, o mercado 5.0 flui nas ondas do 5G, sigla da quinta geração de tecnologia de telefonia móvel  ou pelas redes de Wifi. É um novo cenário antropológico. 

O mercado de consumo se infiltra via celulares com apelos insistentes das empresas de marketing e extração e venda de dados – as famosas bigtechs – com seus aplicativos e tentáculos manipuladores, os algoritmos. Eles nos persuadem 24/7 – 24 horas durante setes dias – a comprar, consumir, gastar. 

A cultura do mundo virtual inverteu a lógica do consumo. Se antes era consumir para viver, hoje, virou viver para consumir. E assim, o pacto consumista nos transformou numa sociedade de consumidores. O ato de consumir passou a conter busca de felicidade, prazer e entretenimento. Diante de toda esta artilharia, como superar a mentalidade do consumo insustentável

O consumo nos constitui enquanto seres sociais.  E não podemos cair na armadilha moralista de separar consumo de bens supérfluos do consumo de bens necessários. Se o supérfluo é composto de tudo aquilo que não é essencial, como definir o que é importante e que é essencial para aqueles indivíduos em uma determinada cultura? 

Lívia Barbosa, especialista em Antropologia do Consumo, adverte que “ninguém se alimenta genericamente, tudo o que fazemos em termos de consumo é específico e particular. Não existe um vestir genérico, bebida genérica, comida genérica. Consumimos para além dos meros objetos. Consumimos a dimensão simbólica das coisas e a utilizamos como expressão de nossa subjetividade. ” Consumimos os significados atribuídos e presentes nas coisas.  E nossas práticas sociais de consumo constituem nossa humanidade. 

Réveillons ou festas de Ano Novo, ao longo das praias da costa brasileira, são ritos de passagem com muitas camadas de significação. São festas de confraternização e compartilhamento de afetos, esperança, mas também oportunidades comerciais para a indústria turística.  

Entretanto, há quem discorde com veemência, por exemplo, do alto investimento em fogos de artificio, utilizados nestas festas. Seria desperdício de dinheiro? Outras vozes repudiam a festa mais pelas montanhas de dejetos e lixo deixadas nas areias e na água do mar. Como começar um Ano Novo com esta conduta irresponsável e deletéria em relação ao meio ambiente? Eis aí um debate urgente e necessário. 

O moralismo em relação ao consumo vigorou até pouco tempo atrás. Só era bem visto o consumo para a satisfação de necessidades básicas. Saber dosar, ter limites, consciência de custos, disciplina de gastos: a ética da época preconizava consumir somente o necessário. Gastos em excesso só em ocasiões especiais, como datas festivas e férias. 

Nas duas últimas décadas, entretanto, firmou-se uma mudança radical de mentalidade e o verbo consumir passou a ser conjugado juntamente com ostentar. Não basta ter, é imprescindível aparecer. Especialistas em psicopatologia vem aí o germe da compulsão psicológica. Consumir comportamentos tóxicos (em especial, dependência aos videogames, às tecnologias, etc) por um lado, e por outro, substâncias lícitas e ilícitas. Seja de carboidratos e açúcar (epidemia de obesidade), seja a dependência química, em geral. 

Quanto mais se expande o consumo, mais se deixa rastros de devastação nos ecossistemas do planeta. E o lixo passou a ser produzido em escala exponencial.  Falei “lixo”, mas é uma palavra imprópria para quem lida com sustentabilidade, sendo melhor definido como resíduo ou descarte. 

A sociedade do excesso descarta seus resíduos por toda parte. Imagens de três realidades chocantes foram levadas às aulas mencionadas: fotos tiradas por satélites da NASA detectaram as montanhas de resíduos têxteis, rejeitados pelas indústrias do Paquistão, Índia e China, lançadas nas dunas do deserto de Atacama, no Chile. 

O documentário “Oceano de Plástico”, de Craig Leeson, de 2016, revela como são formadas as gigantescas ilhas de material plástico lançados ao mar, flutuando à deriva pelos oceanos. Ameaça crescente à vida marinha, sua fauna e sua flora, e a explosão de micro plásticos ingeridos pelos frutos do mar que comemos.  A foto que acompanha este texto (de Mladen Antonov/AFP) mostra uma onda do mar carregada de descarte letais para a vida marinha. 

A terceira imagem projetada foi estarrecedora e chocante: cenas da Cracolândia, em São Paulo, a maior metrópole da América do Sul, cenário de terror e símbolo da fragilidade de todos os ecossistemas atingidos pela violência e ignorância ambiental e pela assimetria social. Os indivíduos zumbis, despossuídos de dignidade humana, sofrem os efeitos da drogadição. 

Os dependentes químicos parecem gritar as palavras de “As cidades Invisíveis”, obra prima de Ítalo Calvino. O misterioso segredo da mítica cidade de Leonia parace ser o mesmo das nossas metrópoles. Assim escreve: 

“Não é tanto pelas coisas que a cada dia são manufaturadas, vendidas e compradas que se pode avaliar a opulência de Leonia, mas sim pelas coisas que a cada dia são jogadas fora a fim de abrir espaço para as novas. E assim você começa a imaginar se a verdadeira paixão de Leonia é realmente, como eles dizem, o desfrute de coisas novas e diferentes, e não, em vez disso, o prazer de expelir, descartar, limpar-se da impureza recorrente. ”

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Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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