Priorizar a saúde mental
Foi há uns tantos anos atrás, eu atuava em um RH do Polo Petroquímico de Camaçari, foi quando escutei um operário chamar um colega de chão de fábrica, de Tarja Preta. Rodrigo era seu nome e ele havia usado antidepressivos ao longo de um período da doença. O bastante para seus colegas de trabalho se inspiraram no rótulo da medicação para rebatizá-lo. Rodrigo superou a doença, mas o estigma ficou: virou Tarja Preta.
Em conversa com ele, soube que já estava acostumado ao apelido, não era isso que lhe causava incômodo. O que jamais poderia esquecer – nem muito menos perdoar – foi ter escutado deles que sua doença fora farsa, fingimento, que seu sofrimento fora “teatro”.
Anos depois, Rodrigo Tarja Preta foi prejudicado em sua carreira, pois sua instabilidade emocional pesou na hora das promoções. A doença mental tem destas coisas. Afinal ela recebeu por séculos diferentes pesados rótulos, estereótipos e uma profusão de preconceitos e tabus. São muitas as fantasias, mitos e distorções. É muita incompreensão sobre o sofrimento psíquico.
Por que é tão difícil acreditar na verdade do sofrimento psíquico?
Tétano, pneumonia, difteria, diabetes, etc., tudo bem, as pessoas acreditam. São doenças reais, com sintomas observáveis em exames clínicos. Mas angústia e depressão não aparecem no Raio X. Será esse o argumento na base da crença de que doença mental é fingimento?
Até o final do século 18, o louco era tratado por padres, feiticeiros e policiais. O “doido varrido”, o “louco de pedra”, o surtado, o lunático, eram demonizados e passaram a ser trancafiados e acorrentados. Choques elétricos, banhos de água gelada, cirurgias, medicação com efeitos colaterais desastrosos, etc., contribuíam mais com a degradação da saúde do paciente do que com sua recuperação.
O médico francês Dr. Phillipe Pinel, no final do século 18, foi o primeiro profissional a enxergar os loucos como doentes e seus pacientes e arrancar suas correntes. Com base nisso, Pinel baniu tratamentos antigos, tais como sangrias, vômitos induzidos, purgações e ventosas, substituindo-as por tratamento digno e respeitoso, que inclui terapias ocupacionais. Dentro dessa linha, foi um dos primeiros a libertar os pacientes dos manicômios e das correntes, propiciando-lhes alguma liberdade.
Entretanto, mesmo depois da publicação dos experimentos de Pinel, era comum encontrar instituições que tratavam os loucos como criminosos ou endemoniados. Dr. Freud só apareceu um século depois, com uma abordagem psicoterápica revolucionária, enfatizando o tratamento pela palavra.
Seguindo a trilha psicanalítica, é preciso questionar o conceito de Saúde Mental. Para a psicanalista Vera Iaconelli, por exemplo, “a saúde mental não pode ser vista como um platô idealizado no qual o sujeito alcança a felicidade e a serenidade. Saúde mental, numa outra interpretação, seria a melhor equação entre a vida que a gente leva, a pressão que a gente sofre e a resposta que a gente dá. ”
É nos ambientes de trabalho que se constata uma explosão de expressões de mal-estar. Até a década de 1990, as queixas mais recorrentes registradas no setor de Medicina do Trabalho eram relacionadas a problemas posturais, como as Lesões por Esforços Repetitivos (LER) ou Distúrbios Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho (DORT).
Bastante diferente de hoje em dia, quando as queixas se concentram em transtornos mentais e emocionais, como surtos de ansiedade, depressão, desgaste mental, estresse, TDAH, crises de burnout, e até suicídios.
Estudiosos do campo vem apontando para a tecnologia como fonte desencadeadora de novos transtornos mentais. A revolução tecnológica e suas mídias digitais são uma fonte imensa de ataques, em especial para os jovens, alvos preferenciais do bombardeamento de imagens e palavras jorradas da nuvem de aplicativos e algoritmos.
Aqui neste site da ABMP já publiquei diversos artigos sobre o impacto da disrupção tecnológica na vida das pessoas, sua influência crescente e elevado o grau de insalubridade decorrente da exposição indiscriminada às mídias digitais. Vale lembrar que a pandemia empurrou as crianças e adultos para as telas e ninguém passou incólume pelos anos de home office e distanciamento social.
As big techs, senhoras dos feudos digitais, integrantes do círculo GANAM – um acrônimo com as iniciais da Google, Apple, Netflix, Amazon e Microsoft -, comandam o império do fast e apostam na aceleração social do tempo e na Economia da Atenção, dois temas tratados em artigos recentes. Não se pode esquecer que as big techs são empresas caça níqueis que loteiam fatias da Nuvem e se utilizam de todos os artifícios para manipular nossos impulsos de consumo.
Para tanto, elas precisam manter o tempo de urgência o mais acelerado possível, seu negócio depende da velocidade para incrementar lucros e ampliar influência. E assim instituíram um novo ritmo e uma nova lógica, a saber, a vida acelerada teria mais eficiência. A lentidão não está com nada, o slow, o devagar, só expressa falta de jeito e algum grau de inadequação. Assim como a fast food, a cultura da aceleração é isenta de nutrientes. E drena a saúde mental.
A aceleração do nosso ritmo de vida atual é um dos pontos chave da deterioração psicológica. Segundo o sociólogo Hartmut Rosa, ela decorre do aumento do número de episódios ou ações e de experiências por unidade de tempo – ler, digitar, consultar sites, conversar, se locomover – tudo ao mesmo tempo, agora. Esta sobreposição de experiências inviabiliza qualquer possibilidade de reflexão e de vivência, de fruir o presente e encontrar sentido no trabalho.
O aumento da velocidade provoca o embotamento da percepção, a crise de imaginação, resultando numa vivência inconsistente oca e vazia. A aceleração do tempo repercute, portanto, no aumento de formas de sofrimento psíquico.
Um novo ano se inicia, vamos priorizar nossa saúde mental.
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Carlos Linhares
Colunista
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