Economia da Atenção: como o universo das telas deteriora nossa saúde mental
Repare que a dama do meme que ilustra este texto mal consegue sustentar os coraçõezinhos vermelhos. A Deusa dos likes e das curtidas expressa contentamento e ar de triunfo, afinal recebeu o reconhecimento esperado e capturou a atenção de quem a curtiu.
Ela não faz ideia de seu papel na economia da atenção e tampouco de que, quem a curtiu, deixou suas pegadas impressas e com elas os algoritmos de plantão vão extrair seu perfil mercadológico e “minerar” dados para serem comercializados.
A atenção se transformou na galinha dos ovos de ouro do regime digital no capitalismo de plataformas, sob protagonismo das empresas bilionárias cujos logos fazem parte de nosso dia a dia. Sim, são as mais bem-sucedidas do planeta e lidam com a mercadoria mais cobiçada. Não é à toa que as metodologias de captura do olhar sobre as telas tem se sofisticado exponencialmente.
A regra é clara: o freguês precisa permanecer magnetizado pelas ofertas disponibilizadas na barra de rolagem. Ele precisa se abstrair dos estímulos externos e fixar seu olhar nas ofertas. Aliás, é esta uma definição encontrada em artigos de Psicologia: atenção é um foco seletivo em alguns dos estímulos que percebemos atualmente, enquanto ignoramos outros estímulos do ambiente.
Para capturá-la um ecossistema foi criado, patrocinado e nutrido pelas big techs – Google, Microsoft, Apple, Netflix, Amazon, etc. Ele conta com uma sofisticada arquitetura conduzida por por engenheiros, designers, profissionais de marketing e especialistas em psicologia comportamental, neurologistas, etc., que opera com condicionamento e reforço psicológico e tem na mira promover a aderência dos olhos e dedos sobre as telas, isto é, engajamento em um contexto de acirrada disputa comercial por atenção.
É um capítulo novo na antropologia do consumo marcado pelo que Pierre Levy chama de “dilúvio informacional”. O paradoxo é que a há abundância de oferta de informações e ao mesmo tempo escassez do recurso de maior valor, a atenção. A propósito, um CEO da Netflix confessou em entrevista a jornal que seu maior obstáculo é o sono. Dormir é prejudicial para seu business.
O conceito de economia da atenção já tem mais de 50 anos, foi criado por Herbert Simon, um economista e psicólogo, vencedor de um prêmio Nobel. Um pioneiro em perceber que a atenção deveria ser capitalizada e tratada como uma mercadoria. “Chamar a atenção” passou a ser um modelo de negócios que requer uma sofisticação de estímulos como a TV que fala, o celular que vibra no bolso, o dispositivo que apita, a plataforma que sinaliza e disputa o foco do usuário, o algoritmo que escolhe o filme a se assistir, etc.
Os marcadores de atenção vem sofrendo constantes metamorfoses. Como se destacar produtos nas prateleiras e nas telas se a palavra de ordem é saturação? Saturação de imagens, de estímulos, de sons, de apelos, de estratégias, de canais, de informações, etc. Como capturar a atenção do freguês, cada vez mais distraído? Para muitas empresas a resposta tem sido: tudo!
Herbert Simon, ainda na década de 1970, advertia em entrevista a uma revista que, em um mundo rico em dados, a abundância de informação iria precipitar “a escassez do que quer que seja que a informação consome. E o que a informação consome é bastante óbvio: ela consome a atenção dos seus destinatários”.
No início do século 21, quando questionaram a Erich Smith, nada menos que o CEO da Google à época, sobre qual o bem mais cobiçado pelas empresas, sem pestanejar revelou que seriam “os glóbulos oculares dos usuários grudados nas telas”.
Para Adam Alter, professor de psicologia e marketing na Universidade de Nova York, autor do best seller “Irresistível: porque você é viciado em tecnologia e como lidar com ela” (há edição brasileira) foi esta retaguarda de manipulação que tornou a dependência tecnológica “irresistível”. Não há, de fato, como resistir ao modelamento comportamental baseado em teorias skinnerianas e outras abordagens, responsáveis pela inoculação do vício e da dependência tecnológica.
Adam Alter descreve criteriosamente como são armados os alçapões para a captura da atenção dos usuários e como se dá o processo de extração de dados a partir de uma fração de tempo de nosso olhar sobre alguma tela. Ele denuncia, sem meias palavras, que o conglomerado inocula o vício digital e promove a dependência tecnológica.
De fato, nos tornamos obcecados com nossos e-mails e redes sociais, e passamos horas magnetizados pelas redes sociais acessíveis nas telas. A absurda quantidade de conteúdo de um lado e, do outro, a escassez de tempo, resulta na sensação de que se está sempre perdendo algo. Há quem sofra do transtorno psíquico denominado de FOMO, acrônimo de “fear of missing out”, ou seja, medo de se estar perdendo algo. Haja ansiedade!
Para quem opera na Saúde Mental o modelo de negócios das bigtechs, lastreado nas plataformas digitais e no uso abusivo de tecnologias, é o responsável pelos danos psíquicos às pessoas. A dependência tecnológica e o ritmo de vida que ela impõe tem provocado um aumento de casos de ansiedade e depressão em jovens. Isso pode indicar a relação entre essas tecnologias e a deterioração da saúde mental.
O ecossistema “irresistível” parece que não vai mudar sua forma de atuação e nem diminuir o ritmo de captura (hook) da atenção. E não adianta apelar para uma saída individual, via detox de celular, abandonando romanticamente a tecnologia e se afastando do ambiente digital.
Pode até ser saudável se fazer um jejum intermitente de mídias digitais e da dependência tóxica das telas, mas não convém alimentar caprichos tecnofóbicos. Em um mundo no qual efetivamente nossos vínculos de afeto, profissionais, de estudo, criatividade, laser e nossa visibilidade social fluem pelos canais digitais essa não parece ser uma saída viável.
Qual é a parte que nos cabe neste latifúndio? Como exigir responsabilidade de empresas poderosas cujas receitas são maiores do que a de muitos países? Será que ainda faz sentido questionar, resistir, fazer barulho e cobrar delas e do poder público um debate institucional de verdade, questionando ética, transparência e equilíbrio de forças?
Haverá espaço para cidadania na economia da atenção?
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Carlos Linhares
Colunista
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