Não aperte a minha mente: saúde mental em tempo de urgência
O tempo está passando muito veloz, a velocidade é o novo valor, virou uma commodity, a regra do quanto mais rápido melhor se consolidou. Não apenas comemos fast food, como também escutamos música e recados no WhatsApp de forma acelerada. E há quem assista filmes em rotação mais veloz. Paira no ar um decreto: a vida acelerada tem mais eficiência. A lentidão não está com nada, o slow, o devagar, só expressa falta de jeito e algum grau de inadequação.
Quem controla a aceleração do tempo são senhoras donas dos feudos digitais, até pouco tempo atrás eram as GANAM – acrônimo com as iniciais da Google, Apple, Netflix, Amazon e Microsoft -, mas agora já há outras big techs no comando do império do fast.
A aliança entre o novo capital e as tecnologias digitais é matrimonial. E a dominação das big techs no cenário global evoca o feudalismo medieval, ou melhor, como denominou o economista francês Cédric Durand, tecnofeudal, pois elas recriam em parte lógicas políticas e econômicas daquele período.
As grandes plataformas e ambientes digitais seriam como bens imobiliários desmaterializados, fortalezas “medievais” que colonizam o ciberespaço e o depredam: ganham todo o terreno de seu negócio e adquirem a concorrência e empresas complementares. São elas que mantém o tempo de urgência o mais acelerado possível, seu negócio depende da velocidade para incrementar lucros e ampliar influência.
A tese do sociólogo alemão Hartmut Rosa, uma referência acadêmica, sustenta que aceleração social do tempo faz parte da estrutura da atual sociedade, é sua marca e seu traço principal. Ela é o motor do modelo econômico deste novo capitalismo de vigilância e de plataformas.
O modelo econômico só se sustenta pela velocidade, pelo fluxo vertiginoso dos dados, no ritmo 24/7, abreviatura de 24 horas por dia, 7 dias da semana, referindo-se usualmente aos negócios ou serviços que estão disponíveis durante todo o tempo sem interrupção. Por mais paradoxal que pareça, é a hiper aceleração que mantem o modelo econômico estável e em equilíbrio.
Rosa adverte que a aceleração acontece além da vontade individual, não há opção, pois se trata de uma tendência sistêmica da modernidade, como um todo. É o traço da hipermodernidade. Assim, nós não aceleramos o tempo por nosso bel prazer, mas porque somos conduzidos por vetores da cultura de urgência que nos impõem a experiência de tempo acelerado, com toda sua carga de ansiedade e insalubridade psicológica.
Para descrever a origem deste fenômeno, Hartmut Rosa recorre a três momentos históricos em épocas diferentes: a aceleração tecnológica, a aceleração das mudanças sociais e a aceleração do ritmo de vida.
As mudanças tecnológicas observadas na passagem do século 18 para 19 se deram em torno das máquinas a vapor que aqueciam as caldeiras, moviam fábricas, trens, navios e populações inteiras que passaram a se deslocar com maior velocidade, levando mercadorias e produzindo fricções. As inovações tecnológicas alteraram profundamente a percepção do tempo nos corações e mentes.
A segunda onda, descreve ele, se alastra com a implantação da energia elétrica, na transição do século 19 para o 20, articulando ainda mais a mudança social, com o estímulo de novos comportamentos, atitudes, valores, modas, estilos de vida, formas de relacionamentos e obrigações sociais. As cidades, agora iluminadas à noite, atraem gente do campo. O tempo monótono da vida rural passa a contrastar com o frenético tempo urbano.
A terceira onda ocorre na passagem para o século 21 com a brutal aceleração do ritmo de vida, impulsionado pela informática, pela tecnologia e, há uma década, por sua majestade o aparelho celular´, o smartphone. Ela se inicia em meados do século 20 e nos alcança no tempo presente hiper acelerado. Vivemos sob a densa Nuvem de Zuckerberg que paira sobre nós e nos governa com suas milícias de drones, aplicativos, algoritmos e IA.
Habitamos um mundo à nossa volta cada vez mais tecnológico, sobre o qual perdemos o entendimento. Caiu por terra a crença de que seria possível compreender a nossa existência através da computação, e que o acúmulo de dados seria suficiente para melhorar o mundo. Distopicamente, seguimos à deriva em um mar de informação, separados por um kit irritante de fundamentalismo, narrativas rasas e simplistas e teorias conspiratórias insanas.
O lado tóxico da aceleração vertiginosa recai sobre a saúde humana, em particular, sobre a saúde mental do trabalhador, alvo primordial dos efeitos deletérios da aceleração.
Na Sociedade do Cansaço, as doenças laborais não repetem os padrões tradicionais como fadiga, intoxicação ou Ler-Dort. Na cultura da aceleração, as queixas recorrentes se referem mais ao sofrimento psíquico, às altas taxas de ansiedade, às crises de pânico, burnout, desgaste mental, esgotamento psíquico e quadros de depressão, segundo relatórios da OMS (Organização Mundial da Saúde).
O sociólogo francês Alan Ehrenberg, autor de O culto da performance, investigou a transposição do etos cultural da alta performance desportiva para o mundo do trabalho. A pressão exercida sobre os atletas para “performarem” mais e melhor – e em menor tempo – muitas vezes os leva a encurtar caminho, apelando-se ao dopping, prática arriscada e ilegal para se alcançar a performance ideal, segundo a cultura da aceleração. Sem respeitar a saúde, as etapas e a ética.
“O estresse da performance é um dos sintomas da compressão do tempo vivido e não suportado”, relembra Rosa.
Uma cena dramática, simbólica e representativa de toda esta tensão, aconteceu nos Jogos Olímpicos de Tóquio, no Japão, em 2020. A protagonista, Simone Biles, extraordinária medalhista olímpica norte-americana, em plena competição, do alto dos seus 1 metro e 42 cm, apertou solenemente o botão de pause. Em nome de sua saúde mental, se retirou das provas, causando perplexidade.
Pagou para ver quando disse por todos nós:
– Não aperte a minha mente.
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Carlos Linhares
Colunista
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