Ansiedade, estresse e correria – entre Chronos e Kairós

jul/2024

A experiência da ansiedade só é “divertidamente” nos filmes da Disney. Na vida real, cobra um pedágio altíssimo e requer maturidade emocional e resiliência. É sintomático que a animação “Divertidamente 2”, do estudio Pixar, tenha atingido um estrondoso êxito e muitos milhões de dólares, em poucas semanas em cartaz. Não resta dúvida: a ansiedade está solta no ar e não veio sozinha. Há uma profusão de sinais de mal estar psicológico em nosso tempo.    

A aceleração crescente do ritmo de vida, a adoção radical das tecnologias digitais, a submissão a um tempo de urgência acelerado, exigência da economia da atenção, com a compressão do momento presente, com múltiplas tarefas sobrepostas, são fatores por detrás da avassaladora onda de insalubridade mental que dispara a ansiedade, o desgaste mental, o estresse, o burnout, a depressão e até o suicídio. Retrato 3×4 da Sociedade do Cansaço pintado pelo filósofo Byung Chul Han. 

Vamos nos perguntar sobre o que a ansiedade tem a ver com a vivência contemporânea do Tempo. Tomemos esta experiência em três níveis de apreciação: o tempo cronológico, chamado assim por influência do deus Chronos, da mitologia grega, representado por um gigante pavoroso que devorava os próprios filhos. 

Segundo o poeta Hesíodo, século VIII a.C., Chronos, para governar o mundo, castrou o seu pai, matou e devorou cinco dos seis filhos recém-nascidos. Apenas Zeus sobreviveu, salvo pela mãe. Tudo motivado pelo medo de Chronos de perder seu poder e domínio e alterar a ordem vigente. 

Chronos representa de forma cruel a precariedade de nossa vida no tempo, a fugacidade da duração, a evanescência das coisas: tudo  passa, inexorável e irrepetivelmente. A saída é aproveitar ao máximo cada segundo, “carpe diem”.  As lentes de Chronos nos fazem  perceber a vida quantitivamente, devorados pelos dentes dos relógios, calendários, agendas, despertadores, prazos, metas e estações. Pelo canto matinal dos galos e pelas badaladas dos sinos das igrejas que nos içam da cama.  

Chronos é fundamental para a vida e seu desenvolvimento, é de alto valor para os projetos em um mundo pautado temporalmente. Esta concepção do tempo induz à necessidade de gestão, de controle, de esforço para fazer caber no seu fluxo a concretização de projetos e ambições. Tempo de urgência, correria, pressa e ansiedade. 

Outra acepção é o tempo biológico, que nos remete à trajetória da vida de cada um, da  infância à juventude, da maturidade à velhice, até à finitude. É um tempo condicionado em grande parte pela genética e se tornou uma fonte implacável de ansiedade numa cultura que idolatra a imagem e o mito da eterna juventude. Prefere-se o disfarce e a ocultação dos vestígios da passagem do tempo. O marketing faz a festa com a oferta de recursos: filtros, cremes, cirurgias, colágeno, aplicações de botox, harmonizações, etc. 

Nicole Aubert e Claudine Haroche, em “Tiranias da visibilidade: o visível e o invisível nas sociedades contemporâneas” (2013, Unifesp) advertem que a “exigência pela visibilidade se tornou tão difundida que ser visível apresenta-se como uma espécie de requisito para existir, e a subjetividade exibicionista sobrepõe-se à preservação de valores compartilhados.”. 

A terceira acepção, o tempo psicológico, tem muito a ver com as expectativas e a ansiedade diante do futuro ou o equivocado apego nostálgico ao passado idealizado. Lembra o escritor Milan Kundera que a palavra grega para retorno é “nostos”, e que “algos” significa sofrimento. As duas juntas formam nostalgia, o sofrimento causado pelo desejo irrealizado de retornar a um lugar ou a um tempo vivido. Hora de reler Freud: luto e melancolia. 

Entra em cena Santo Agostinho, que dedicou um capítulo inteiro de suas Confissões ao mistério do Tempo. O pensador cristão se contrapõe ao tempo cosmológico de Aristóteles e ao imperativo do tempo cronológico, que reduz o humano à servidão das horas, à condição de criatura “devorante e devorada”, mera extensão de “quantidades de tempo”.  

Ele nos remete ao Kairós, semideus, filho de Zeus, o sobrevivente da voragem assassina de Chronos. Se Chronos é a duração, a extensão dos dias e anos, Kairós é O Momento, o tempo  certo e oportuno de epifania e revelação. É ele que pode lançar, sobre o tempo ansioso e  cronometrado, sentido, resposta e razão. O apóstolo Paulo, na Carta dirigida à igreja de Corinto, escreve a palavra Kairós como uma chance de salvação, oportunidade para se deparar com ideias reveladoras e iluminação no caminho. Palavra de quem caiu do cavalo, ficou cego e passou a ver a vida com outras lentes.     

Os dois tempos são convergentes e complementares. Na mitologia, Kairós era neto de Chronos. Kairós irrompe na planície entediante do cotidiano, seja como insight ou descoberta. Ele pode aparecer num encontro e num diálogo, diante de uma obra de arte seja ela filme,  teatro,  dança, literatura, museus.  Seja numa viagem, num empreendimento, num esporte ou pelo efeito de uma palavra numa sessão de análise. Ele é o melhor dos fármacos e pode ser o melhor dos antídotos à ansiedade. 

Uma outra sintonia com o Tempo é experimentada pelos narradores. “Só através da narração o tempo se converte em tempo humano”, afirma o filósofo Paul Ricoeur.  Dois poetas baianos conhecidos narraram seu encontro com o rosto kairótico do Tempo. 

Gilberto Gil, com seu Tempo Rei e Caetano Veloso, com sua Oração ao Tempo. Gil se despoja, sereno, perante o Tempo Rei: 

Não me iludo / Tudo permanecerá do jeito que tem sido
Transcorrendo, transformando. Tempo e espaço navegando todos os sentidos

E Caetano pede ao “compositor de destinos, o prazer legítimo, e o movimento preciso, tempo, tempo, tempo, tempo. Quando o tempo for propício, tempo, tempo, tempo, tempo, de modo que modo que o meu espírito ganhe um brilho definido e eu espalhe benefícios, tempo, tempo, tempo, tempo.”  

Outro narrador, o poeta português e teólogo,dom José Tolentino de Mendonça traduz o Kairós como “o resgate de um tempo que possa dar uma alma ao mundo.” 

Chronos já não devora mais quem experimenta o Tempo como potência criadora. 

Cantemos com Gil, divertidamente:    

Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei, 

transformai as velhas formas do viver.
Ensinai-me, ó pai, o que eu ainda não sei.

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Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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