Eu ou o planeta? O dilema do consumo na era da urgência climática
Em algum momento, todos nós já nos pegamos nesse dilema: consumo ou preservação? O conforto do agora ou a sobrevivência do amanhã? A pergunta, embora pareça simples, é um dos grandes paradoxos do nosso tempo. Afinal, até que ponto o peso de salvar o planeta deve cair sobre os ombros do indivíduo? E mais: será que esse caminho é viável?
Vivemos em um tempo de contradições gritantes. Em um instante, lemos um relatório sobre o colapso iminente dos ecossistemas. No próximo, somos bombardeados por anúncios de um novo gadget que promete facilitar nossas vidas — ou, sejamos francos, apenas incrementar nossa coleção de quinquilharias. E assim seguimos, como hamsters em uma roda que gira entre a culpa ambiental e a tentação do consumo.
Os números não mentem: a produção global de resíduos sólidos urbanos atingiu 2,24 bilhões de toneladas em 2020 e deve chegar a 3,88 bilhões até 2050, segundo o Banco Mundial. A indústria da moda, uma das mais poluentes do mundo, é responsável por cerca de 10% das emissões globais de carbono e pelo consumo anual de 93 bilhões de metros cúbicos de água, conforme relatório da ONU. Além disso, apenas 9% do plástico produzido no mundo desde 1950 foi reciclado, enquanto o restante lota aterros, polui oceanos ou é incinerado, liberando ainda mais CO₂ na atmosfera.
O consumo sustentável surge como uma promessa de equilíbrio entre essas forças. Mas, sejamos honestos, o que isso realmente significa? Reciclar nossas embalagens de delivery enquanto acumulamos roupas de fast fashion? Trocar o carro a combustão por um elétrico e manter o mesmo estilo de vida hiperconsumista? Ou será que a resposta está em algo mais profundo, mais estrutural?
A verdade incômoda é que a crise climática não será resolvida apenas por boas intenções individuais. A reciclagem, por exemplo, é essencial, mas representa apenas um paliativo se não repensarmos a lógica da produção em massa. O veículo elétrico pode reduzir emissões, mas não resolve o problema de um mundo projetado para a dependência automobilística. O consumo consciente, por mais importante que seja, ainda é uma gota em um oceano se não houver mudanças sistêmicas. Relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) alertam que, sem mudanças estruturais na economia e na matriz energética global, será impossível limitar o aquecimento a 1,5°C, evitando eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes.
Além disso, o conceito de obsolescência programada, empregado por diversas indústrias, acelera o descarte de produtos que poderiam durar muito mais. Um estudo da Universidade das Nações Unidas revelou que, só em 2019, o mundo gerou 53,6 milhões de toneladas de lixo eletrônico, um recorde histórico. Apenas 17,4% desse montante foi reciclado adequadamente. O restante contém metais pesados que contaminam o solo e a água, ampliando o problema ambiental. Sem políticas que incentivem a durabilidade e a reparabilidade dos produtos, continuamos presos a um ciclo de descarte rápido e consumo incessante.
Mas será que estamos verdadeiramente no controle desse ciclo? A publicidade e as estratégias de marketing moldam nossos desejos e percepções, fazendo-nos acreditar que precisamos constantemente substituir o que já temos. O design dos produtos, aliado à pressão social e ao desejo por status, cria um ambiente onde comprar se torna um reflexo automático, e não uma necessidade real. Ao mesmo tempo, os preços acessíveis de itens descartáveis tornam mais difícil a escolha por alternativas sustentáveis, muitas vezes mais caras e menos acessíveis à maioria da população. O resultado? Um sistema que nos encoraja a consumir sem questionar e penaliza quem tenta resistir a essa lógica.
No caso da alimentação, o mesmo dilema se aplica. Sabemos que a produção intensiva de carne é um dos maiores responsáveis pelo desmatamento e pela emissão de gases de efeito estufa, mas a mudança de hábitos alimentares esbarra em questões culturais e econômicas. Alimentos ultraprocessados, apesar de nocivos à saúde e ao meio ambiente, são muitas vezes mais baratos e acessíveis do que produtos naturais e orgânicos. O discurso de consumo consciente precisa, portanto, levar em conta a desigualdade socioeconômica e a necessidade de políticas públicas que tornem opções sustentáveis viáveis para todos, e não apenas para uma elite preocupada com seu impacto ambiental.
Mas isso significa que estamos isentos de responsabilidade? De jeito nenhum. Podemos — e devemos — romper com a ideia de que consumir é sinônimo de realização. Precisamos ressignificar sucesso, bem-estar e até mesmo vaidade sem que isso signifique esgotar recursos naturais. Redescobrir o prazer no compartilhamento, na reutilização, na valorização de quem produz de forma ética. Porque a nossa identidade não está no que acumulamos, mas no que criamos, no que trocamos, no que experimentamos.
E aqui está o grande ponto: salvar o planeta não é só sobre abrir mão, mas sobre ganhar algo novo — uma relação mais saudável com o que nos cerca. O que precisamos mudar não é apenas o que compramos, mas como nos enxergamos dentro desse sistema. Se “compro, logo existo” foi o lema de uma era, talvez seja hora de atualizá-lo para “penso no que consumo, logo todos podemos existir por mais tempo”. Esse talvez seja o maior ato de resistência e, quem sabe, de redenção do nosso tempo.
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Emanuel Bizerra
Colunista
Comunicólogo e ecologista, especialista em consumo, marcas e comunicação. Observador da vida cotidiana e amante da natureza, escrevo quando pede o coração.
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