A infantilização da fé e do sagrado
Nos anos 70, muitos jovens frequentavam o Mosteiro de São Bento da Bahia, um espaço privilegiado de espiritualidade cristã e intensa experiência cultural. Lembro de uma surpreendente jornada de cinema de arte promovida por Dom Bernardo, um monge beneditino com mente brilhante e liderança contagiante. O objetivo do circuito de cinema, dizia ele, era se sensibilizar com a angústia religiosa dos gênios cineastas e sua procura por Deus, mesmo que eles fossem ateus. O quanto eles, com sua arte sofisticada, traduziam e vocalizavam as questões existenciais e espirituais dos homens daquele tempo e levantavam questionamentos viscerais sobre o sentido da vida ou a falta de sentido dela, como assistimos no Sétimo Selo, de Bergman, aos 20 anos de idade.
Éramos tão jovens, mas no Mosteiro do século 16, aprendemos que para acreditar em Deus ou para negar sua existência era preciso trazer argumento maduros e deixar de infantilizar sua imagem. Os debates sobre o universo simbólico dos filmes de Fellini, Visconti, Kurosawa, Bergman e outros, captando as questões cruciais sobre a natureza humana, seus valores e expressões nos iniciaram numa espiritualidade adulta e sobretudo de abertura e tolerância, de respeito aos signos de todas as formas religiosas.
Hoje está em curso uma franca infantilização da fé e do sagrado. A imagem de Deus presente nos discursos catequéticos, histéricos e panfletários revelam que há algo mais por trás da estratégia de transformar sujeitos em ovelhas passivas – e infantilizar a ideia de Deus.
Como ainda se consegue êxito no controle de mentes pela culpa e imposição do medo, em pleno século 21? Por que as igrejas neopentecostais crescem, promovendo a regressão dos seus fiéis, estimulando um retrocesso da etapa adulta do desenvolvimento psicológico – etapa da dúvida, da crítica e da especulação – para uma fase anterior, já vivida, ingênua e infantil? Como é que alguém com dentes de gente grande pode desistir de mastigar alimento sólido e voltar a tomar mingau?
Um traço óbvio da infantilização é a cafonice religiosa estarrecedora recorrente. Ela se faz sentir nos espaços de culto, nos discursos rocambolescos e fora de contexto, com vocabulários arcaicos e frases escatológicas. Tudo coberto por uma calda de chantili de autoajuda juvenil.
A fé infantilizada oscila entre a ingenuidade do pensamento mágico e a ostentação de discursos culpabilizadores. E dá resultado: basta observar o incremento de parlamentares da bancada da Bíblia. A infantilização plasmou um deus kitsch, de extremo mau gosto, mas útil à tarefa de manipular. O termo kitsch aqui que se caracteriza pelo exagero sentimentalista, melodramático ou sensacionalista e expressa algo que foi fraudado e se esforça para imitar uma obra de arte. O Templo de Salomão, em São Paulo, ou os discursos alucinados da pastora Damares, serviriam de ilustração. O kitsch é um simulacro com uma intenção populista. Convenhamos, entretanto, ele não é privilégio dos neopentecostais.
A infantilização da fé se disseminou entre as religiões e seus dirigentes também por conta da necessidade de encher os templos e angariar seguidores. Há mais de 30 anos, no Brasil, que sociólogos observam o incremento do número de evangélicos, em especial os neopentecostais, que se proliferam exponencialmente. Basta ver a quantidade de garagens transformadas em igrejas, nos bairros populares. O mobiliário é simples, conta com cadeiras de plástico e, para animar os cultos, um serviço de som.
Nestes cenários kitsch multiplicam-se as ovelhas ansiosas que se julgam rapidamente aptas para se tornarem pastoras. Ovelhas precocemente desejam liderar seus próprios rebanhos e reproduzir a carreira próspera do seu adorado pastor, obtendo os ganhos de status que ele alcançou. A carreira moral da ex-ovelha, hoje pastora, dispensa o esforço intelectual e o estudo sistemático dos mitos e da cultura religiosa, sem falar do conhecimento profundo da teologia e da exegese de textos. Basta ter carisma que, no caso, se traduz como talento e expertise em promover a catarse, a explosão emocional sugestivamente associada à libertação da alma. A catarse é interpretada como um rito de purificação, perdão dos pecados e descarrego de culpas.
E assim o mercado da fé vai sendo abarrotado de autoproclamados pastores, bispos e apóstolos. Não procure estudo filosófico algum ou uma noção mínima de hermenêutica e teologia bíblica baseada em estudos críticos. As igrejas reformadas tradicionais, felizmente, ainda preservam e prestigiam os estudos consistentes. Mas para quem milita com a infantilização da fé, as táticas de controle as técnicas de marketing e persuasão são suficientes. Para algumas ovelhas seu verdadeiro up grade não é o cargo de pastor ou pastora, somente. Depois que galgaram prestígio e entraram na máquina de dízimos é preciso batalhar ainda mais pela própria ascensão social e subir o elevador da carreira política. Os treinamentos cênicos e dramatúrgicos dos cultos potencializam as táticas de persuasão em programas de rádio AM e TV. As ovelhas pastoras são audazes locutoras de rádio e apresentadoras de TV. O escopo passa a ser a posse de um rebanho próprio de ovelhas dóceis que aos poucos serão metamorfoseadas em eleitoras. Enfim, eleita parlamentar, aleluia, a ovelha se refestela no cargo público – seja ele municipal, estadual ou federal -, pastando em verdes prados de verba pública, cargos de confiança e foro privilegiado. Glória a Deus!
A infantilização da fé e da imagem de Deus nada tem de ingênuo para a carreira da ovelha esperta. Ela sabe que o segredo é aparentar, dissimular, persuadir, emocionar e manejar a arte da espetacularização. A infantilização da fé e do sagrado retiraram o senso crítico, a postura cética e a capacidade de duvidar. Até mesmo, como temos visto com frequência no atual governo, o senso de ridículo. Pequenas igrejas, grandes negócios.
Carlos Linhares
Colunista
Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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