A revoada dos crachás: uma epidemia de demissões voluntárias

mar/2022

Começou nos EUA, mas já se espalhou por vários países. A mídia norte-americana se refere ao fenômeno como The great resignation traduzido como A grande renúncia

É absolutamente alarmante o número de demissões voluntárias. Foi o psicólogo norte americano Anthony Klotz que cunhou o termo para descrever a onda de desligamentos desde o início da pandemia da covid-19, nos Estados Unidos.

Klotz acompanhou os dados desde abril de 2020 publicados no Bureau of Labor Statistics (Escritório de Estatísticas de Trabalho) que contabilizava 4,5 milhões de americanos que haviam deixado seus empregos voluntariamente. E vem chamando a atenção para esta crise que, calcula-se, já envolveu mais de 25 milhões de trabalhadores numa epidemia de renúncias voluntárias.

Trata-se da taxa de abandono laboral mais alta dos Estados Unidos desde que o Bureau começou a fazer um seguimento destas cifras no ano 2000.

O modus operandi das demissões é sui generis e combina bem com o regime tecnológico digital. É que as demissões são dramatizadas, devidamente filmadas e viralizadas pelo TIK TOK. São demissões com lacração.

Multiplicam-se vídeos com empregados em plena catarse emocional, explicitando as razões do seu “I quit” (Eu me demito) em um ritual de euforia e libertação. Os vídeos viralizam instantaneamente e contagiam milhares de outros trabalhadores revoltados, que aderem à onda antitrabalho. 

Os demissionários revelam em alta voz e muitas vezes com ofensas e palavrões as razões do seu desligamento. As cenas acontecem em postos de gasolina, fábricas, supermercados, escritórios, etc.. Acusam os chefes de arbitrários, assediadores, recordam as broncas e o custo psicológico de conviver em um ambiente de trabalho tóxico.

As razões apontadas são inúmeras: saturação, indignação, exploração, cansaço, revolta, etc., palavras de ordem de um fenômeno que tem causado consequências drásticas nas grandes redes de varejo multinacional com a revoada de milhões de crachás. 

O material reunido é farto e está disponível na plataforma Reddit onde se encontram diversos fóruns online para denúncia, catarse e reflexão sobre as demissões. Em uma sociedade na qual o trabalho não conta com proteção como os EUA, a precariedade das condições de trabalho tem chegado a níveis desumanos de exploração. Os trabalhadores expõem desse modo sua frustração diante da natureza da relação de emprego.

Analistas republicanos, em oposição ao Governo Biden, enxergam o fenômeno como uma consequência direta da ajuda financeira perdulária e populista do seu governo às famílias, como compensação pelas demissões e perdas ocasionadas pela pandemia.

Quem pede demissão, dizem, seriam como trapezistas que só se arriscam a dar saltos mortais porque sabem que há uma rede de proteção bancada pelo governo. E que os cheques enviados pelo Governo estariam disseminando inflação e parasitismo.

Mas nada disto consola gigantes como Amazon, Google, Wall Mart e similares. Entre perplexas e atônitas, estão decididas a rever algumas políticas internas e buscar uma solução negociada. O movimento está causando escassez de trabalhadores em áreas essenciais da economia, como o setor de serviços. 

Para Anthony Klotz e profissionais da área de Psicologia as explicações carecem de maior debate. Mas há um ponto de convergência entre eles: a crise estaria relacionada à vivência da pandemia, aos dois anos de exaustiva experiência de trabalho remoto, à retomada da convivência familiar e às mortes vivenciadas por todos no período.

O trabalhador contou com mais tempo para refletir e se confrontar com o grau de degradação do trabalho e como as estruturas de autoridade foram ficando mais draconianas e controladoras do que nunca. O home office escancarou o desgaste da relação emocional dos trabalhadores com seus empregos e empregadores anteriores.

O trabalho remoto, apesar de bastante exaustivo, trouxe simplificação e não afetou a produtividade. Com roupas informais, na proximidade dos filhos e pets, sem estresse do trânsito, com horários mais elásticos e longe da toxicidade de boa parte dos ambientes laborais. Retornar aos velhos cenários seria um retrocesso.

Parece que o trabalhador cruzou um daqueles portais míticos dos templos da Grécia Antiga. E se deparou com uma epifania, uma revelação.

Novas lentes serão necessárias para se fazer a leitura e decifrar as mensagens passadas nos vídeos performáticos viralizados no Tik Tok. 

A impactante revoada dos crachás carrega uma crise filosófica em relação ao sentido ou propósito do trabalho e do significado dele para a vida em comum e para o sistema econômico.

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O conteúdo e opinião publicados neste artigo são de inteira responsabilidade do autor ou autora.

Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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