A solidão é fera, a solidão devora

abr/2023

…é a amiga das horas, prima-irmã do tempo, faz nossos relógios caminharem lentos, causando um descompasso em nossos corações. Não tem IA nem Chat GPT que consigam criar versos tão precisos para expressar a dor da solidão como estes do poeta Alceu Valença, salve!

Há algumas semanas, me deparei com um livro que me deixou perplexo e fascinado. Um estudo sobre a solidão contemporânea. O mais curioso e improvável: foi escrito por uma economista, a professora inglesa Noreena Hertz, que abordou o tema com rara sensibilidade e por ângulos antes pouco explorados.

No original, seu título é “The Lonely Century: How to Restore Human Connection in a World That’s Pulling Apart”. Foi traduzido no Brasil como “O século da solidão – reestabelecer conexões em um mundo fragmentado”. 

A autora trata a solidão contemporânea como uma epidemia global e traço característico e diferencial da vida em nosso tempo. Alerta que o fenômeno é bem anterior à pandemia de corona vírus, lockdown e distanciamento social, que ele já vinha sendo fermentado há tempo, impulsionado pela mudança fatal na ordem econômica, pelas radicais mudanças tecnológicas e pela reconfiguração das cidades.

Governos há anos vem manifestando espanto diante de dados levantados sobre o assunto. Nos Estados Unidos, 3/5 dos cidadãos revelaram que se sentem sós; na Alemanha, 2/3; Suiça, 2/5; Suécia, ¼. Um em cada seis argentinos reclama do mesmo mal.

A Grã-Bretanha, diante de dados tão alarmantes, decidiu, em 2018, instituir um Ministério da Solidão. O Japão, no ano seguinte, copiou esta política de saúde para estancar a onda de suicídios de velhos e, pasmem, de jovens. 

Individualmente, a solidão pode ser percebida como um estigma, fruto de um fracasso pessoal, resultante de várias sensações como desconexão, abandono, exclusão, de alguém sem habilidade para se conectar e que se sente incompetente para sustentar amizades, laços de afeto.

O fenômeno compromete a saúde mental, empobrece a vida das pessoas e as deixa infelizes, acarretando riscos de várias dimensões como enfermidades cardíacas, câncer e demência. “É tão nociva para a saúde como fumar quinze cigarros por dia”, compara a autora numa live.  

A solução para a dor da solidão está longe de ser farmacêutica. As drogas pacificadoras não podem dar conta da complexidade da devastação que um ecossistema específico provocou. As soluções devem ser buscadas também nos planos econômicos, políticos e sociais.

Cheios de carências e frustrações, os cidadãos solitários já não depositam confiança na política nem esperança na democracia. O canto da sereia dos populismos de direita detecta aonde estão estes corações desamparados, alvos fáceis para as garras dos algoritmos e dos discursos de ódio. Os smartphones da solidão, conectados às redes digitais, são então acionados para a disseminação de mentiras e desprezo às instituições da democracia.

Os celulares e as redes digitais contribuem com o fenômeno, mas a tecnologia não é a única culpada.  Em média, se olha o aparelho celular 221 vezes ao dia. A tela acesa adere ao nosso olhar e nunca foi tão fácil se desconectar do outro e habitar cada um – e se proteger – em sua própria bolha digital.

Além das distorções no uso da tecnologia, a autora critica com consistência a devastação da vida nas cidades. A desurbanização seria tão culpada pelo isolamento quanto a tecnologia. A precarização da qualidade de vida nas metrópoles, a gentrificação, a privatização dos espaços coletivos e parques, a especulação imobiliária febril e sem escrúpulos, a devastação de áreas verdes, tudo conspira contra os antigos espaços de encontro, convivência e trocas.

Afinal, onde se vai aprender a conviver com as diferenças e exercitar a tolerância, sem o arquétipo da praça e da ágora grega? Onde se praticará a cortesia e a democracia?

As radicais transformações no lugar e nos processos de trabalho, o enxugamento de quadros, a migração em massa para as cidades e as décadas de políticas neoliberais, que colocaram o interesse próprio acima do bem coletivo, etc., são outras fontes de explicação para o tecido social ter ficado tão esgarçado, líquido e refratário à interação.

Apesar de tudo, Noreena Hertz não é distópica nem pessimista. Antes, acredita em mudanças e aponta para soluções tão audazes quanto possíveis, mediante o uso da “inteligência artificial compassiva” até modelos inovadores para a vida urbana, que promovam “novas formas de revitalizar nossas vizinhanças e reconciliar nossas diferenças”.

Não por acaso, se tornou consultora em empresas comprometidas com os critérios ESG, que abraçam as políticas de meio-ambiente, responsabilidade social e governança. E tem sido figura cativa no Fórum Mundial, em Davos, Suíça.

Em palestras do TED Talks nas quais participa – disponíveis no YouTube –  ela sustenta que há esperança na vida em nossas comunidades fraturadas e que ainda há tempo de restaurar a conexões perdidas. É hora de domar a fera da solidão que nos devora e conspira contra a vida social democrática.

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O conteúdo e opinião publicados neste artigo são de inteira responsabilidade do autor ou autora.

Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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