A terceira via e o sapatinho de cristal
Onde se esconde o candidato-cinderela? O príncipe-eleitor está procurando por ele, de porta em porta, com o sapatinho de cristal da terceira via nas mãos. Alguns candidatos tentaram calçá-lo. Ocorre que até agora pé nenhum serviu. Mas o sapatinho continua aqui.
Nos últimos 6 meses, tive a oportunidade de acompanhar cerca de 300 grupos focais com eleitores de todo país, em pesquisas qualitativas – método que capta de modo profundo o processo decisório de voto e as sutilezas dos eleitores – que revelaram um eleitor ávido por sua cara-metade presidencial. São eleitores, que apesar de declararem voto nos dois principais presidenciáveis, estão bastante desconfortáveis com essas escolhas. E o mais importante: não estão fantasiando um ideal improvável de candidatura, nem projetando um modelo de político incompatível com a política. Nada disso. O que desejam é tão concreto e viável, quanto um pé caber num sapato com o número certo. Talvez esteja faltando aos partidos dedicar um olhar atento ao pragmatismo com que o eleitor define esse espaço, que poderia ser ocupado pela terceira via, e oferecer essa alternativa.
É preciso perceber que a polarização é, em primeiro lugar, a expressão de um voto de proteção ou de resgate de crenças, valores e interesses próprios. É um voto arriscado contra um risco maior. Arriscado por quê? Porque a maioria sabe que suas escolhas situadas nos dois extremos carregam, inclusive, possibilidades de perdas. Até porque, afora os eleitores mais “fanáticos” de lado a lado, os demais que hoje votam nesses candidatos já não idealizam seus líderes e os aceitam “apesar de”. A grande oportunidade nasce exatamente desse tremendo incômodo visto em parcela significativa de eleitores declarados dos dois principais candidatos.
Por que é tão difícil acomodar em uma única candidatura as qualidades desejadas por eleitores que hoje estão mais focados em quem não votar do que em quem votar? Talvez porque os embates até agora estejam circunscritos a campos políticos-ideológicos rígidos, que não dialogam com a peculiaridade do sistema de classificação do senso comum, que se utiliza do empirismo para chegar às próprias conclusões.
Aqueles que manifestam simpatia por políticos de Esquerda são movidos pela identificação com a defesa de lutas sociais e se solidarizam com as parcelas mais pobres da população. Os que rejeitam ou simplesmente não simpatizam com a Esquerda avaliam que políticos dessa tendência são motivados por ideologias extremistas, em detrimento do que é efetivamente do interesse da sociedade. Já os simpatizantes “da Direita”, para além do entendimento de que está comprometida com a fiscalização dos atos de gestores no combate à corrupção, querem evitar o retorno de “ideais de esquerda”, que colocam em risco valores que sustentam o conceito de família. São pais e mães comuns, que estão assustados com a velocidade com que se impõe a aceitação de um novo “politicamente correto”. Em contrapartida, quem rejeita a Direita e seus políticos, enxerga neles a “velha política”. Esse desenho, ainda que impreciso e um tanto intuitivo é levado muito à sério por uma grande parcela de eleitores quando pensam em um candidato ideal, e costuma balizar seus votos, apontando um potencial caminho aberto para um candidato que se apresente assim.
Afinal, não existirá um candidato em quem se possa votar, sem sacrificar valores morais e religiosos, ao mesmo tempo em que se aposta numa política que priorize o combate à desigualdade social? Se a direita e a esquerda, mais extremadas, se apropriaram de bandeiras ideológicas excludentes, a maioria dos eleitores gostaria mesmo é de juntar numa mesma escolha valores mais conservadores com ideais progressistas; a defesa do seu padrão de família e o retorno do seu poder de compra; a defesa dos direitos das mulheres e a não concordância com o aborto; o fim da corrupção e o fortalecimento da democracia, por exemplo. Não parece ser uma reivindicação de religiosos fundamentalistas, à direita, nem de ateus comunistas, à esquerda. Pelo contrário: as pesquisas revelam que o eleitor, tendo a opção adequada, vai usar do bom senso para votar. Esse ambiente falsamente ideologizado é fomentado por militâncias barulhentas das duas candidaturas que estão à frente nas pesquisas, como convinha às duas filhas da madrasta má, na história, para esconderem a Cinderela.
O fato é que existe uma gama de eleitores insatisfeitos com o andamento do debate político nacional, ávidos por alternativas. Em tese, a construção de uma candidatura de terceira via que conseguisse expressar esses anseios do cidadão comum, teria a oportunidade de confinar as duas principais candidaturas a nichos radicais. Pode parecer antagônico aos últimos resultados de pesquisas quantitativas – que apontam para um campo desfavorável a uma terceira via – mas a conversa aprofundada com o eleitor demonstra um ambiente da opinião pública muito propício a uma candidatura que atendesse aos seus critérios. O que falta é essa opção no cardápio.
Está na hora de alguém reparar que o sapatinho de cristal da opinião pública não é uma utopia, é real e está no ponto para ser calçado. É um caminho estreito e árduo, mas existe. Só está faltando se apresentar o pé com o número certo.
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O conteúdo e opinião publicados neste artigo são de inteira responsabilidade do autor ou autora.

Karin Koshima
Colunista
Especialista em opinião pública, psicanalista e mestre em políticas públicas. Diretora Executiva da K2 Pesquisa & Estratégia. Trabalhou em todas as eleições majoritárias nos últimos 20 anos.
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