Brasil 2019: entre Cassandra e Poliana
Pobre Cassandra, ninguém lhe dá ouvidos, ninguém mais acredita em suas profecias, parece que ela só sabe criticar e torcer contra. Por mais que grite e demonstre com firmeza o que está por vir, ninguém aposta uma ficha sequer em sua clarividência. Ainda que ela sempre acerte e antecipe o futuro com precisão, sua fama de mulher pessimista e catastrofista, negativa e fatalista superou qualquer reconhecimento de sua competência. Cassandra tornou-se desagradável e pesada e passou a ser ignorada ao dizer suas verdades, acusada de loucura pelos troianos, doida varrida.
Pobre, Κασσάνδρα, filha de Hécuba e Príamo, reis de Tróia, princesa sibila, uma das poucas vozes corajosas a antecipar a cruel invasão dos gregos na cidade por meio do ardiloso estratagema de Ulisses, um cavalo de madeira colocado como uma oferenda do lado de fora das muralhas. Cassandra advertiu e antecipou os riscos iminentes naquele presente de grego, anteviu a tragédia sobre Tróia, implorou a Príamo, seu pai, que destruísse o blefe do cavalo, recheado de guerreiros armados. A falta de credibilidade em suas previsões, mesmo certeiras, promoveu a destruição de Tróia.
Invasão consumada, a cidade tomada pelos gregos, Cassandra conseguiu se refugiar no templo de Atena, onde é descoberta agarrada à estátua da deusa e, sem clemência, é violada pelo brutal Ajax, filho de Ileu. Ésquilo, o dramaturgo, em uma de suas tragédias, apresenta Cassandra mais velha, em outra terra. A profetisa em sua peça teatral permanece longamente em silêncio, muda e impotente, dramatizando a incapacidade do profeta de impedir as tragédias e intervir na realidade, mesmo com sua plena capacidade de prevê-las.
A mitologia grega elucida que Cassandra foi castigada por não haver honrado sua parte no trato erótico com Apolo. Desde cedo, ela foi sacerdotisa do templo de Apolo, um deus fascinado por sua juventude e extraordinária beleza. Apolo lhe concedeu o poder de profetizar em troca de algum dia ela se tornar sua amante. Cassandra, entretanto, sempre se esquivou, evitando cumprir sua parte no contrato. Enquanto isso, progredia no conhecimento, na arte da prestidigitação e subia os degraus dos arcanos da adivinhação. Apolo certa feita avançou em sua direção, mas ela o repudiou, revelando não estar disposta a ceder sua parte no combinado.
Apolo, irado, arquitetou um castigo olímpico, pensou numa estratégia de vingança que mantivesse sua palavra empenhada, mas que deixasse uma cicatriz implacável em sua alma. Garantiu que iria continuar profetizando, antecipando os fatos, o devir de reis e cidades, adivinhando paz ou bonança, conquistas ou derrotas, porém jamais alguém iria acreditar nos seus prognósticos e admoestações.
E assim estamos nós nestes tempos estranhos do Brasil de 2019. Parece que fazer prognósticos e antecipar desastres passou a ser o mesmo que torcer contra. Inferir e deduzir, antecipar e projetar, ainda que a partir de dados, virou catastrofismo e pessimismo de Cassandra. A pressão é pelo concordismo, quem não quiser se tornar persona non grata precisa se calar e aderir ao pensamento único.
Adeus Cassandra, vá pra Cuba ou Venezuela, nos deixe aqui com Poliana, a menina encantadora, otimista e antípoda da sibila agourenta e catastrófica.
Poliana, para quem não recorda, é a protagonista de uma obra universal da literatura infanto- juvenil de autoria da escritora norte-americana Eleanor H. Porter. Uma menina órfã, filha de um pastor protestante que a influenciou na linha do Livro de Jó e de trechos bíblicos marcados pela positividade, resiliência e sentimento de gratidão, apesar de tudo.
Daí nasceu seu contagiante “jogo do contente”, uma estratégia de vida otimista e assertiva, com ênfase na mais absoluta resignação e sem noção alguma da ambuiguidade e crueldade dos corações humanos. Poliana apareceu em 1913 e, devido ao seu imenso sucesso, já em 1915 reapareceu como Poliana moça, em inglês Polyanna grows up, onde a personagem, após sofrer enormes traumas, apresenta uma visão menos cor de rosa, mais madura, mas ainda fiel ao jogo do contente.
A encruzilhada brasileira de 2019 nos deixou diante destas duas personagens. São duas mentalidades antagônicas e um destino comum. De um lado as Polianas com gás e esperança por mudança, com seu jogo do contente, brincando diante de abismo. Do outro, as Cassandras agourentas, pessimistas e amarguradas que já não conseguem convencer de nada a ninguém.
A tragédia de Cassandra foi causada por uma ética partida, um trato rompido com uma divindade implacável. Ela preservou sua lucidez em analisar, sua competência de profetizar, em antecipar as ameaças e oportunidades, elaborar prognósticos, mas não inspira fé, perdeu o crédito da escuta. A deslealdade instalou desconfiança e não lhe dão ouvidos.
Poliana é subserviente e mentalmente indigente. Ovelha kitsch, tem delírios de grandeza que vão da Disney a Holywood, confunde resiliência com masoquismo, bate continência e marcha soldado, cabeça de papel, sem se dar conta que Apolo virou um algoritmo e seu templo se instalou na Nuvem das Sagradas Mídias Digitais. Apolo já possuiu seu coração.
Fico imaginando a bela Cassandra incensando a estátua de Atenas, deusa da sabedoria, e escutando as narrativas infantis de Poliana. Regressão, infantilidade, puerilidade travestida de inocência, simplicidade, credulidade, pureza, singeleza, candura. O cavalo de Troia, de novo.
Poliana por sua vez observa a boca amarga da sibila vomitando apocalipses, mas nem ela nem ninguém consegue escutar nenhuma palavra.
Os 365 dias de 2019 prometem ser de forte atrito entre Cassandra e Poliana.
Carlos Linhares
Colunista
Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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