Brasil: como sair do labirinto?
Por raivas antigas, Minos, rei de Creta, resolveu castigar Atenas e seu povo com uma pena absurda e perversa: o envio por todos os anos de sete moças e sete rapazes para aplacar a fome do Minotauro, uma criatura com cabeça de touro e corpo humano, que residia num labirinto construído debaixo do palácio do rei.
Ano após ano zarpava então de Atenas um navio com velas pretas com as catorze vítimas rumo a Creta. Atenas chorava pela desgraça dos seus filhos enviados tão jovens para serem sacrificados por ordem do tirano. Ano após ano crescia entres seus cidadãos um sentimento de vergonha misturado com impotência. Só se submetiam porque já conheciam a superioridade militar do Reino de Creta.
Até um dia em que Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas, a contragosto do pai, se ofereceu para ir junto aos catorze jovens, com a intenção secreta de matar o Minotauro e acabar com a punição. Partiram. Chegando lá, conheceu a filha do rei, Ariadne, a qual sempre abominou a crueldade do pai. Ela, admirada com a coragem de Teseu, decidiu salvar sua vida. E discretamente foi à torre onde ficavam todos presos e entregou a ele uma espada e um novelo com fios de lã. E lhe passou instruções.
Teseu levou escondidos sob sua capa a espada e o novelo, e sem que os guardas notassem, amarrou a linha numa saliência da parede, à entrada do labirinto, soltando-a aos poucos pelos corredores obscuros do labirinto.
Era uma arquitetura perversa feita para induzir ao erro, uma trapaça para iludir a percepção, trair a lógica e a sensação de direção. O labirinto ilude o sujeito a acreditar no que é falso, a apostar no erro e sofrer com os equívocos e suas repetições. A mitologia nos espanta ao situar aquela engenharia insana nos subterrâneos do palácio do rei.
A função do labirinto é produzir mal estar, angústia, confusão mental, incerteza, dúvida, falta de referência. Debilitar os errantes navegantes, torna-los presas fáceis da besta fera, ávida por carne humana. Teseu talvez tenha sido a versão original do senhor Josef K, o protagonista do labirinto kafkiano narrado em O Processo, o caso de um cidadão perseguido pela burocracia.
À luz das tochas, Teseu enxergou pilhas de ossos e restos de roupas de vítimas sacrificadas no labirinto, anos antes. Finalmente, o embate de Teseu com o Minotauro, o enfretamento da força bruta com a estratégia. Nem os rugidos tonitruantes nem os enormes chifres pontiagudos estancaram a coragem do herói e sua espada certeira.
De repente, um estrondoso grito sacudiu as paredes do labirinto e Teseu sentiu o sangue quente jorrar sobre seu corpo. E escutou o baque do corpo do gigante contra o chão. Zás-trás! Teseu lhe decepou de um só golpe a cabeça, levando-a consigo para depositar no altar de Atena, sua protetora. E graças ao fio de novelo de Ariadne ele encontrou enfim a saída. A narrativa do mito continua, mas eu paro por aqui.
Relendo o mito repleto de arquétipos, me surpreendo com o protagonismo do Labirinto. Vivemos em um tempo em que o labirinto se expandiu e virou poder. É onipresente, assumiu uma dimensão virtual com as mídias e os algoritmos da era digital.
Seu efeito é o mesmo da antiga arquitetura perversa: induzir ao erro, iludir a percepção, trair a lógica e a sensação de direção. Serve para enredar pessoas, persuadir rebanhos crentes para que acreditem no que é falso, a apostar no equívoco e suas repetições. Debilitar os errantes navegantes, torná-los presas fáceis da besta fera, ávida por carne humana docilizada.
Assim nos tornamos um país enfermo, in firmus, do latim, sem firmeza. Doentes do labirinto, em vertigem, tontos e sem escuta, desorientados.
É muito curioso ver o labirinto ser atribuído à parte interna do ouvido dos vertebrados. Audição e equilíbrio compartilham do mesmo ambiente anatômico. Talvez esteja aí o jeito de sair desse inferno: diálogo com disposição para a escuta e equilíbrio no movimento podem ser os novos fios do novelo de Ariadne.

Carlos Linhares
Colunista
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