Capitu, o Brasil e suas verdades
Há mais de um século nos debatemos com a inquietante dúvida acerca da suposta traição de Capitu a Bento Santiago, em Dom Casmurro. Dúvida, que até pouco tempo, impossibilitava a nós, expectadores dos fatos históricos, uma visão lúcida do cenário – ora por temermos enveredar por uma trama alucinatória, ora por receio de sermos injustos com Capitu, ora por não admitir que vivemos todos uma grande encenação, ou ainda, por acharmos que, verdade ou não, a traição é natural e irrelevante.
Só que agora existem duas verdades evidentes: Capitu traiu Bentinho e todos na Corte sabiam e se locupletavam – uns esbanjando em noitadas luxuriosas, outros catando as migalhas remanescentes do chão do palácio.
Mas ainda existem plebeus que se perguntam se devemos acreditar nas tramas sórdidas. A recusa em enxergar desvela um processo de negação, que quando não bem processado, tende a ter consequências perversas. Nesse caso, no campo político e social.
Para aproveitar a oportunidade dada pelo momento histórico e ir adiante nos avanços políticos, temos que suplantar rígidos posicionamentos partidários e admitir a engrenagem parasitária a qual estamos submetidos. Urge finalmente começar o processo de expurgação, freando a fixação no feroz embate entre quem é mais ou menos culpado e entendendo que não existe o lado do vilão ou do mocinho.
A plebe não sofre só pela traição, mas porque agora percebe que enquanto permaneciam à luz de candeeiro, as luzes que resplandeciam do Casarão Republicano não advinham da gratuita e democrática luz do luar. No entanto, a fatura sempre chegou a eles.
E, assim, com a traição escancarada, ultrajados, teremos que começar a reconhecer que mais que sexual, a traição, nesse caso, é perversa e subtrativa, sendo necessário convencer a si próprio de que existe saída, que não o destino de vítima.
Tenha coragem, Senhor Bentinho, para não inviabilizar a sequência do processo democrático e de expurgação. Admitir que Capitu esteve nua nos braços de outro é sofrido, mas é a única forma de poder tê-la novamente nos próprios braços.
De fato, a Rainha está nua.
Encarar a dupla moral a que estamos submetidos, onde em alguma medida somos também corruptores e corrompidos, permite ver além dessa “moral de circunstância”. A traiçoeira corrupção, com sua impactante abrangência é elemento constitutivo do tecido social e de todos nós.
Bentinho deixou passar o bom da vida preso a um passado de aflitivas dúvidas. Hoje se depara com a verdade que lhe foi jogada na cara. Sua tarefa agora é refletir sobre a parte que lhe cabe nisso tudo e escapar da tentação das obsessões que podem paralisá-lo pela via da negação, vitimização e ressentimento.

Karin Koshima
Colunista
Analista política e de mercado. Especializada no comportamento do eleitor e consumidor. Psicóloga, psicanalista e Mestre em Políticas Públicas.
Não aperte a minha mente: saúde mental em tempo de urgência
O tempo está passando muito veloz, a velocidade é o novo valor, virou uma commodity, a regra do quanto mais rápido melhor se consolidou. Não apenas comemos fast food, como também escutamos música e recados no WhatsApp de forma acelerada. E há quem assista filmes em...
Economia da Atenção: como o universo das telas deteriora nossa saúde mental
Repare que a dama do meme que ilustra este texto mal consegue sustentar os coraçõezinhos vermelhos. A Deusa dos likes e das curtidas expressa contentamento e ar de triunfo, afinal recebeu o reconhecimento esperado e capturou a atenção de quem a curtiu. Ela não faz...
Os saveiros e a aceleração social do tempo
Um dos produtos mais misteriosos que os mestres de saveiros transportavam nos barcos ancorados no Porto da Barra de minha infância era o Tempo. Traziam todo tipo de mercadoria para abastecer a feira livre do bairro, vindos das mais longínquas praias, muito além da...
Pensamento crítico e inteligência artificial
Era o Reino das Matemáticas, no curso de Tecnologia da Informação. Foram vários semestres ao longo de quatro anos, diferentes turmas, mas em cada uma fui recebido com um misto de cordialidade e desconfiança. Temiam que a disciplina de Psicologia fosse perda de tempo...
Inteligência Artificial e Ética: como retornar os dinossauros ao Jurassic Park?
No primeiro filme da série Jurassic Park (Steven Spielberg, 1993) três cientistas – dois paleontólogos e um matemático – recebem autorização para visitar a ilha secreta de Nublar onde se desenvolvia um experimento de segurança máxima, sob controle do Governo...
A solidão é fera, a solidão devora
...é a amiga das horas, prima-irmã do tempo, faz nossos relógios caminharem lentos, causando um descompasso em nossos corações. Não tem IA nem Chat GPT que consigam criar versos tão precisos para expressar a dor da solidão como estes do poeta Alceu Valença, salve! Há...
junte-se ao mercado