Cultura Uber: a ascensão do trabalhador por portfólio

maio/2019

Motoristas de aplicativo, podem reparar, falam pelos cotovelos. Ficam à espreita de algum sinal do freguês para iniciar um papo e, quando acontece, soltam o verbo. São treinados e permanecem calados até que o usuário resolva puxar conversa. Eu sou muito curioso sobre a vida deles antes de aderirem ao Uber. Como era seu trabalho antes e como está sendo no momento presente? Quem melhor do que eles para falar sobre as transformações no mundo do trabalho?

Quase todos com quem falei passaram por outro tipo de ocupação e a maior parte teve outra relação e vínculo laboral. De repente, estão ali, integrando a maior frota de taxis do planeta, sem garantia e sem perspectivas, alguns encarando com pragmatismo, com a justificativa de que é apenas um tempo para “passar a chuva”, enquanto outros, entre a ingenuidade e a ignorância, se referem a aplicativo com termos como empreendedorismo e flexibilização.

Unânimes, todos se ressentem da falta da solidez dos antigos postos e sobretudo do seu status. Os mais críticos e revoltados, maldizem o fim dos empregos, o enxugamento das vagas, a falta das garantias do mercado formal e se queixam do vampirismo praticado pelas operadoras, donas dos aplicativos. Há uma caixa preta neste mercado com pouca transparência.     

Eles são trabalhadores que compartilham de um software global e passaram a integrar a maior frota de taxis do planeta. Trata-se de uma ocupação profissional radicalmente diferente de tudo o que viveram antes, em relações de emprego e trabalho mais formais e estáveis.

Com seus carros, circulam pelas avenidas das cidades sem notar que a paisagem urbana hoje transborda e espelha o mesmo fenômeno que os maltrata: o somatório de precarização, exclusão, efeitos da globalização, automação, informalidade, enfim, a discutida disrupção do trabalho e do emprego. Eles não têm ideia dos fenômenos que promoveram sua exclusão do mundo do trabalho formal, desconhecem que uma nova onda chegou e pulverizou milhares de postos de trabalho por obra e graça das tecnologias emergentes – e em um ritmo exponencial.

Há dois séculos atrás, na primeira Revolução Industrial, a máquina a vapor também fulminou o trabalho de milhares de artífices e, tempos depois, a energia elétrica, outra matriz revolucionária, substituiu com máquinas o trabalho humano, extinguindo postos e suscitando outros. Em meados do século XX, os computadores passaram a dar as cartas e, como em todas as revoluções industriais, profissões de prestígio simplesmente evaporaram. Hoje, a presença crescente da Inteligência Artificial revoluciona e ameaça dispensar a presença humana na paisagem tecnológica empresarial.   

Em um giro nostálgico, relembro pedaços de conversas recentes com os motoristas de aplicativos pela capital paulistana. Um sujeito perto dos 60 anos, ex-gerente de uma big loja da Kodak lá pelos anos 90, relembrou os tempos áureos em que a multinacional tinha 190 mil funcionários e dominava o mercado de papel fotográfico. Ele nunca poderia imaginar tamanho do tombo da empresa. Nem da Kodak nem dele: jamais se viu dirigindo um taxi. Como é que a Kodak não antecipou a mudança em curso? Por que ela não aceitou enxergar o fim de um ciclo?

Uma boa parte dos motoristas que contatei veio de antigos bancos privados: Mercantil, Bamerindus, Econômico, Francês Brasileiro, etc. Seus postos evaporaram, foram engolidos por tubarões do mercado financeiro e todos os processos antigos foram digitalizados. Só ficou quem se ajustou à nova dinâmica.

Em São Paulo, ouvi um caso bem simbólico numa corrida comprida para o aeroporto. Ele foi gerente de uma gravadora na era dos discos de vinil, participou dos dias de glória e glamour da indústria fonográfica, viu de perto artistas prestigiados nos anos 80, descreveu os detalhes de como se trabalhava com a prensa de discos de vinil e da logística de sua distribuição. De repente, a tecnologia mudou, as pessoas começaram a baixar músicas, a cadeia produtiva entrou em colapso.

Vinil virou cult e o CD também foi destronado. Ele e toda sua equipe foram desligados, a empresa faliu e, depois de muito sofrimento, decidiu trabalhar como motorista de aplicativo. Seus netos o ajudaram a se adaptar ao novo mundo, a aceitar o fim dos ciclos, a entender que tudo muda e que a nuvem digital é onipresente. Confessou que aprendeu com sua neta de 14 anos a fazer playlists no Spotify.  Já tem uma com canções dos Bee Gees e outra do rei Roberto Carlos, que escutamos no carro rumo a Guarulhos.    

Motoristas de aplicativos são como reservas arqueológicas de mundos do trabalho. Hoje são uma representação em carne e alma do declínio da era do emprego, do fim da carreira vitalícia e da ascensão do trabalhador por portfólio, aquele que monetiza as habilidades, na expressão precisa do sociólogo Anthony Giddens.

Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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