Entre cretinos e dementes digitais
O personagem Theo, da telenovela Travessia, da TV Globo, encarna um adolescente aficionado em vídeo games, que leva uma vida sedentária e os olhos grudados na tela do monitor. Os efeitos insalubres desta dependência tecnológica se multiplicam: ele não se alimenta, não toma banho, falta aulas, dorme pouco e escapa de toda e qualquer convivência social, causando estranhamento e mal-estar entre familiares.
O garoto, interpretado por Ricardo Silva, aparentemente utiliza a tecnologia de forma apenas recreativa, mas, aos poucos, se transforma de gamer competitivo em zumbi agressivo, com os olhos hipnotizados pela luz do écran, externando sintomas de compulsão e dependência de estímulos tecnológicos. Quando colocado em privação, sem acesso aos jogos ou à senha da internet, explode de forma truculenta, a ponto de agredir fisicamente seus pais.
O drama de Theo na ficção representa a tragédia de milhares de jovens na vida real, em crescente dependência da tecnologia, em tempos de revolução digital. O estado físico e mental das crianças e adolescentes inquieta e preocupa uma legião de profissionais, em especial educadores e da área de saúde.
Neurocientistas, psiquiatras e neuropsicólogos tem sido pródigos em pesquisas e na publicação de artigos sobre o tema. Em rota de colisão com o que a mídia e a indústria da tecnologia costumam pregar, eles concluem que o uso compulsivo das telas prejudica gravemente o desenvolvimento de crianças e adolescentes, promovendo danos à saúde do corpo e ao desenvolvimento intelectual.
O neurocientista Michel Desmurget, diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da França, fez um apanhado de centenas de estudos científicos sobre o tema da dependência digital e comprovou o que já desconfiava: quase todos os pesquisadores defendem a redução drástica no uso das tecnologias, mesmo reconhecendo explicitamente seu potencial e seu valor na educação.
Seu polêmico best-seller A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças ele levanta relevantes questões. Como se explica o declínio das habilidades cognitivas entre crianças e adolescentes? Como e por que ocorre a diminuição alarmante do QI entre crianças e jovens, tornando-a a primeira geração com QI inferior ao dos pais?
O pesquisador as enfrenta, mostrando a carga horária abusiva de exposição aos smartphones, computadores, tablets, etc. E cronometrou o tempo que as crianças e jovens na França investem nos seus gadgets: crianças de 2 a 8 anos passam em média cinco horas por dia entretidas com suas telas. E as de 8 a 16 anos gastam em média sete horas diárias. O que pode emergir deste quadro?
A exposição prolongada aos écrans, além de fazer regredir o QI (quociente de inteligência), prejudica o amadurecimento de zonas neurológicas específicas. Alguns lóbulos cerebrais sofrem uma superestimulação e uma hipertrofia, enquanto outros são sub estimulados, e definham.
Chama a atenção um estudo baseado em conteúdos de artigos do Google Scholar, focado na diminuição de tamanho do cerebelo em indivíduos com dependência digital. A causa da redução de tamanho seria a baixa estimulação. A diminuição do tamanho resulta em prejuízo futuro em termos de socialização, de criatividade, de imaginação, de inovação, de pensamento lógico, na habilidade cognitiva e nos processos emocionais.
O que está em jogo é o “abandono” de áreas neurológicas que darão suporte para o funcionamento de futuras competências, aliás capacidades imprescindíveis para se atuar no mundo em transformação.
Outro conceito, tão instigante quanto controverso, é o de demência digital, cunhado pelo neurocientista alemão Manfred Spitzer, professor da Universidade de Ulm, na Alemanha, e de Harvard, nos EUA, autor do “Demência digital: o perigo das novas tecnologias”, de 2018, ainda não publicado no Brasil, com tradução em castelhano.
Em resumo: cérebros de crianças, adolescentes ou adultos, quando expostos ao uso exagerado de tecnologias, sofrem os efeitos similares aos cérebros de indivíduos idosos, portadores de demência senil, apresentando progressiva redução das habilidades cognitivas, em especial a memória e o discernimento.
A demência digital é uma manifestação do envelhecimento precoce provocado pela dependência tecnológica, afirma Spitzer.
Vídeos com palestras e entrevistas com Dr. Spitzer estão disponíveis no Youtube, em alemão e inglês. Em suas apresentações, diante de plateias internacionais, ele discorre seus argumentos enquanto projeta lâminas com slides de “neuroimagens”, localizando o contraste entre zonas abandonadas e as superestimuladas.
É mais um cientista que relaciona dependência tecnológica com a queda estrondosa do rendimento cognitivo, da capacidade de memorizar e prestar atenção, bem como na qualidade do pensamento lógico.
Fico imaginando o filósofo Aristóteles, pai da ciência, diante destas neuroimagens, questionando aonde foi parar o “zoom politikon”, o animal político e racional de sua clássica definição.
Onde foi parar o cidadão com senso coletivo e capacidade crítica, mentor da pólis e leal à democracia?
O velho sábio grego ficaria atordoado ao vê-lo se balançando – entre cretino e demente -, em dancinhas do Tiktok. Ouço ele indagando: – Como é que um sujeito destes vai ser capaz de defender e sustentar futuramente a democracia?
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Carlos Linhares
Colunista
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