Janeiro: utopias, distopias e recomeços

jan/2023

Não me importo quando me chamam de utópico e sonhador. Encaro o senso de utopia de um jeito positivo, como uma competência criativa, uma capacidade de imaginar a vida para além das contingências. É uma ginástica da imaginação que nos estimula e dá propulsão. Como atravessar o presente mês de janeiro sem acionar o senso de utopia, esta máquina de projeção de futuros melhores e mais justos?

A utopia escancara que nosso presente está terrível, que precisamos e podemos almejar algo melhor e mais perfeito, com menos sofrimento e opressão. A tradução de utopia do grego é não-lugar, u-topos, mas há quem interprete diferente: um-ainda-não-lugar ou, ainda mais bonito, um outro lugar. Bem-vindo a janeiro, mês de utopias e recomeços.

Utopia pode ser o sonho equipado com uma força motriz. Ela é uma reação ao momento presente, revela rejeição à realidade contaminada que nos assola. Pega carona na cauda cometa da imaginação e edifica civilizações ideias em um tempo futuro mítico. Seja a República de Platão, a ilha da Utopia de Sir Thomas Morus, a Shangrilá perdida nas montanhas dos Himalaias, o país das delícias ou a Pasárgada de Manuel Bandeira ou a Maracangalha do mestre Dorival Caymmi: qualquer lugar serve para se instalar um território de justiça, liberdade e igualdade. É o chão ao qual queremos pertencer.

Janeiro costuma ser um mês infiltrado de cristais de utopia, um mês locomotiva do calendário que puxa os onze vagões. O mês que cruza o portal do tempo, troca os números do ano e traz rituais intensos celebrados sob o sol do verão, ao menos para quem vive abaixo da linha do Equador. Tempo de férias, febres e festas.
Desde a véspera do primeiro dia do ano, quando cantamos Adeus, Ano Velho, entre eufóricos e embriagados, num rito de sonhos conhecido como Réveillon, que janeiro se assanha com os ritos da utopia: e haja roupa branca, velas acesas al mare, flores lançadas à deusa sereia e eis o som dos mantras, e as simpatias partilhadas – as lentilhas e pedaços de romãs. E borbulham espumas nas taças e nas ondas do mar e as fantasias são tantas que até a cor das peças íntimas que cada um deve usar na primeira noite vira um talismã.

Os derradeiros janeiros, porém, foram os mais distópicos, infestados pela praga da Covid, não adiantava nada cantar “Adeus, ano velho” que ele não sai de cena. Mas, graças à Ciência e às vacinas, o janeiro do momento presente chegou, sob o signo da mudança e da retomada.

Nos tristes janeiros da peste, vivemos por trás das máscaras e amedrontados com a ameaça do contágio. Vivemos grandes perdas humanas e sociais. E, no Brasil, atravessamos uma longa noite de desolação e obscurantismo, submersos na gosma tóxica que asfixiava a alma e retirava o oxigênio das expectativas.
Mas eis um novo janeiro, mais solar e com esperança renovada. Ainda persiste a atmosfera distópica de um país dilacerado, mas é hora de cada um retomar seu lugar no rito de passagem e refletir sobre quais recomeços vamos encarar. Ritos são marcadores do tempo e é bom trazer de volta o que ficou registrado nos anos difíceis que passamos.

Algumas vezes fomos fortes, demos saltos qualitativos, ganhamos medalhas olímpicas em contorcionismos: merece recordação. Recomeços pedem retrospectivas, o exercício da boa lembrança. Mas recomeço se faz com os lutos feitos, celebrados e quitados. Cada um articule sua virada. Não vale terceirizar a esperança em fogos de artifício.

Pode parecer estranho, mas o recomeço nos leva de volta ao senso de utopia, de inquietação acompanhada de invenção e sonho. Não se trata de pensar o mundo possível, mas de imaginá-lo, criativamente. Nesse exercício de busca de outro lugar a gente flagra um segredo da utopia: sua motivação contém uma ética e uma política. Será que vem daí sua potência e propulsão?

Bem-vindo seja Janeiro, mês dedicado a Jano, o deus romano das portas, em cujo poder estão os começos e os fins, o princípios e as mudanças. As representações de Jano mostram que é um deus de duas faces: uma olha para trás, voltada ao passado e às reminiscências, a outra para frente, na direção da perspectiva e da esperança. Ave, Jano, regente dos inícios, divindade das boas escolhas e decisões.

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Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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