Janeiro: utopias, distopias e recomeços

jan/2021

Não me importo quando me chamam de utópico e sonhador. Encaro o senso de utopia de um jeito positivo, como uma competência criativa, uma capacidade de imaginar a vida para além das contingências. É uma ginástica da imaginação que nos estimula e dá propulsão. Como atravessar o presente mês de janeiro sem acionar o senso de utopia, esta máquina de projeção de futuros melhores e mais justos?     

A utopia escancara que nosso presente está terrível, que precisamos e podemos almejar algo melhor e mais perfeito, com menos sofrimento e opressão. A tradução de utopia do grego é não-lugar, u-topos, mas há quem interprete diferente: um-ainda-não-lugar ou, mais bonito, um outro lugar. Bem-vindo a janeiro, mês de utopias e recomeços.

Utopia pode ser o sonho equipado com uma força motriz. Ela é uma reação ao momento presente, revela rejeição à realidade contaminada que nos assola. Pega carona na cauda cometa da imaginação e edifica civilizações ideias em um tempo futuro mítico. Seja a República de Platão, a ilha da Utopia de Sir Thomas Morus, a Shangrilá perdida nas montanhas dos Himalaias, o país das delícias ou a Pasárgada de Manuel Bandeira ou a Maracangalha do mestre Dorival Caymmi: qualquer lugar serve para se instalar seu território de justiça, liberdade e igualdade. Ela é o chão ao qual queremos pertencer. 

Janeiro costuma ser um mês infiltrado de cristais de utopia, um mês locomotiva do calendário que puxa os onze vagões. O mês que cruza o portal do tempo, troca os números do ano e traz rituais intensos celebrados sob o sol do verão, ao menos para quem vive abaixo da linha do Equador. Tempo de férias e festas.

Desde a véspera do primeiro dia do ano, quando cantamos Adeus, Ano Velho, entre eufóricos e embriagados, num rito de sonhos conhecido como Réveillon, que janeiro se assanha com ritos simbólicos da utopia: e haja roupa branca, é tanta vela acesa, flores lançadas para deusas sereias e cantam-se mantras, lentilhas e romãs, borbulham espumas nas taças e nas ondas do mar e as simpatias se juntam às fantasias e decidem alucinadamente até a cor das peças íntimas que cada um deve usar.  Janeiro é demais.  

  

Um janeiro distópico   

Mas janeiro de 2021 é diferente, herdou o lixo tóxico de 2020 e não adianta cantar Adeus, ano velho que ele não sai de cena.  Sem os rituais, o luto por tantas perdas transbordou e virou essa gosma tóxica na qual a cada dia a gente se asfixia, sem o oxigênio das expectativas. As utopias-Brasil entraram em decomposição e tem sido cada vez mais difícil conviver com quem transpira a mentalidade putrefata reacionária, mesmo sendo gente próxima que amamos e que antes julgávamos ser do bem.  

Como pensar em recomeços sem sossego na alma? Como não se indignar ao ver a boiada passar, o país sem governança e o número de vítimas da Covid crescendo na mesma proporção de desempregados? Desalentador.

A distopia desbancou a utopia e invadiu janeiro. Sem horizontes, como pensar em recomeços? A distopia, inverso da utopia, faz uma sátira pessimista do futuro do  planeta, uma crítica social mordaz sobre nosso destino comum. Tem dominado o espaço na literatura e no cinema. Black Mirror, a mais distópica das séries da Netflix, que mostra o lado negro das telas e das tecnologias, já vai entrar na 5ª temporada. 

A distopia inverte as ilusões e nos empurra à reflexão. Utiliza dos mesmos artifícios imaginativos da utopia: projetar em um cenário futuro a vida no planeta devastado e inóspito e, em geral, sob o domínio de máquinas inteligentes (1984, George Orwell; Blade Runner, Ridley Scott; 2001: uma Odisseia no espaço, S. Kubrick) e, as mais das vezes, sob a tirania autoritária de um Big Brother ou pelo hackeamento da mente, como na clássica trilogia de Matrix.

É um gênero literário com obsessão em denunciar a relação promíscua homem-máquina e a onipotência e onipresença do poder sob um Big Brother ou um governo tirano e totalitário,  que dá as cartas e controla a tudo e a todos em uma sociedade sem justiça nem liberdade. Nas ficções distópicas a função dos meios de produção de tecnologia é drenar a alma singular, extirpar individualidades, vigiar e punir, docilizar corpos, usando verbos de Foucault, promover o monitoramento sistemático dos indivíduos e exercer o controle arbitrário absoluto. 

Seu escopo é manter a massa produzindo em um planeta inóspito e ecologicamente devastado, amparado por ministros teocratas, como no assombroso romance distópico O Conto da Aia, de 1985, da canadense Margareth Atwood. É impossível não ler nas entrelinhas deste parágrafo a tragédia do momento presente no Brasil.

 

 Janeiro, distopia e recomeços  

Mas janeiro é o mês dos recomeços e, apesar da atmosfera distópica no país, cada um que invente seu rito de passagem e reflita sobre quais recomeços vai encarar. Os ritos são marcadores do tempo e é bom trazer de volta o que ficou marcado no ano difícil que passou. Algumas vezes fomos fortes, demos saltos qualitativos, ganhamos medalhas olímpicas em contorcionismos, merece recordação. Recomeços pedem retrospectivas, o exercício da boa lembrança. Recomeço se faz com os lutos feitos, celebrados e quitados. É preciso estar atento e forte, 2020 parece que não querer fazer a passagem. Cada um articule sua virada.  

Pode parecer estranho, mas o recomeço nos leva de volta ao senso de utopia, de inquietação acompanhada de invenção e sonho. Não se trata de pensar o mundo possível, mas de imaginá-lo, criativamente. Nesse exercício de busca de outro lugar a gente flagra um segredo da utopia: sua motivação contém ética e política.

Será que é daí que vem a potência e a propulsão?

Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
Mais artigos

Ansiedade, estresse e correria – entre Chronos e Kairós

A experiência da ansiedade só é “divertidamente” nos filmes da Disney. Na vida real, cobra um pedágio altíssimo e requer maturidade emocional e resiliência. É sintomático que a animação “Divertidamente 2”, do estudio Pixar, tenha atingido um estrondoso êxito e muitos...

ler mais

Consumo insustentável na sociedade do excesso

Recentemente, fui convidado pelo Instituto Multiversidad Popular, em Posadas, na capital da Província de Missiones, na Argentina, para falar para os alunos de curso de pós-graduação. A missão da “Multi”, como a instituição é carinhosamente conhecida, é difundir...

ler mais

A potência oculta dos ritos de passagem

Vocês já repararam quantos ritos celebramos nos meses do verão? A temporada começa antes do Natal. Sagrados ou profanos, eles estão presentes nas tradicionais confraternizações que demarcam o fim do ano laboral, com os lúdicos “amigos-secretos”, típicos ritos “de...

ler mais

Priorizar a saúde mental

Foi há uns tantos anos atrás, eu atuava em um RH do Polo Petroquímico de Camaçari, foi quando escutei um operário chamar um colega de chão de fábrica, de Tarja Preta. Rodrigo era seu nome e ele havia usado antidepressivos ao longo de um período da doença. O bastante...

ler mais

junte-se ao mercado