Mentira, fake news e pós-verdrags
A manipulação de sofismas e falácias desafiou o mundo de Sofia, desde os primórdios. Grandes mentes conseguiram decifrar os vestígios do blefe e os truques da mentira. Sócrates, o gigante de Atenas, preferiu sorver o cálice da verdade enquanto os sofistas, artistas da retórica e da oratória, cobravam caro para ensinar o poder da persuasão.
Os sofistas transmitiam a qualquer cidadão que desejasse aprender o manuseio da arte da argumentação, seja para se candidatar a cargo público ou para se defender de algum processo litigioso. Eram hábeis nos jogos de linguagem, utilizando-se de técnicas para o bom manejo do uso das palavras, das táticas de debate, com emoção ou serenidade. Prometiam ensinar como se transforma um argumento fraco em algo incontestável ou tornar frágil um argumento forte, retirando seu potencial de persuasão. Era um tempo que se exigia dos jovens um longo aprendizado de retórica e oratória, habilidades transmitidas para os combatentes como artes marciais para as disputas de convencimento.
Desde então a filosofia criou um filtro esperto: a Lógica. Uma ciência rigorosa para detectar e discriminar a verdade e a falsidade e prever os riscos do engano. Nascia o senso crítico ou uma estratégia para não levar gato por lebre.
Santo Agostinho, no começo da era medieval, chegou a discernir seis manifestações da mentira: a que prejudica, mas é útil. A que faz mal e não beneficia ninguém. A do mero gozo de mentir e também a que se pratica para oferecer prazer ao outro. A do erro religioso – tão contemporânea- e a boa mentira, que pode salvar pessoas. Sempre presente na vida humana, não há como evitar a mentira, mas é razoável duvidar e antecipar os riscos da fraude.
E assim a mentira sofreu mutações ao longo de séculos e chegou à pós verdade, estranho verbete que foi parar no Dicionário Oxford, em 2016. Pós verdade deveria se chamar de pós-verDrag. É um argumento cujo poder de convencimento vem dos truques da performance. A pós-verdade disseminada na mídia constitui-se em uma falácia que parte do pressuposto de que fatos objetivos tem menos influência em moldar a opinião pública do que os apelos à emoção e crenças. E seu “pós” não aponta para uma etapa posterior, mas revela o momento em que a verdade já ficou irrelevante e desimportante. Cumpre-se assim a profecia de Noam Chomsky: “a desilusão com as estruturas institucionais levou a um ponto em que as pessoas já não acreditam nos fatos. Se você não confia em ninguém, por que tem de confiar nos fatos? ” (1).
Assim, as fake news grassam soltas neste caldo. São mentiras atiradas pela metralhadora da internet na era das mídias digitais. Mentiras e “pós-verdrags” lançadas na direção de um nome, uma imagem, um logo, uma marca ou produto com a missão intransigente de destruir credibilidade. Armamento de peso para abater reputação. Reputação são como as extensões sonoras de uma identidade. O escopo é atingir a presa solta no ar e derrubá-la, difamá-la e destruí-la.
A vida debaixo da Nuvem Digital alterou o ritmo do tempo. Produziu uma aceleração & uma velocidade alucinantes que perturbaram a construção de valores que exigem duração e lealdade. Vivemos na era da corrosão do caráter, lapidar expressão que Sennett (2). Esta velocidade crescente falseou valores: a mentira assassina a confiança.
Ponteiros de antigos relógios marcadores do tempo se moviam em um ritmo que já passou. Hoje, os ponteiros dos relógios viraram hélices de um motor.
Fake news são as mentiras jogadas no ventilador.
* * *
(1) “As pessoas já não acreditam nos fatos” https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/06/cultura/1520352987_936609.html
(2) Richard Sennett – A Corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Record, 1999.

Carlos Linhares
Colunista
Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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