O Brasil de volta à 5ª série: a cultura da digitalização e o declínio da maturidade política

nov/2022

Estou impactado com a leitura de “Infocracia: digitalização e a crise da democracia”, o mais recente livro do filósofo e cientista social sul coreano-alemão Byung Chul Han. Aprecio seus ensaios e livros, tão concisos quanto desafiadores.

Ele é um acadêmico do campo da Filosofia e das Ciências Sociais, formou-se na Alemanha e se tornou professor de Filosofia e Estudos Culturais na Universidade de Berlim. Sua obra foi traduzida em dezenas de idiomas e conta com um imenso público que se sente refletido em suas provocações.  

A dificuldade encontrada em seus textos é que ele dialoga com pesos pesados da Filosofia e exige de quem o lê alguma iniciação nas ideias dos autores. Seu escopo é a condição humana digital, no contexto de um capitalismo pós-industrial liderado por empresas de tecnologia da informação.

Em Infocracia, ele mergulha nas consequências do fenômeno da digitalização que avança inexoravelmente, submetendo nossa percepção e relação com o mundo a uma transformação radical. Deixa claro que a informação domina mediante os algoritmos e a inteligência artificial, determinando de modo decisivo os processos sociais, econômicos e políticos.

Em “No enxame: perspectivas do digital”, livro anterior, ele já demonstrava a extrema subserviência dos coletivos digitais (batizados de enxames) às ordens dos algoritmos que vigiam, controlam e alteram nossa sensação, nosso pensamento, nossas vidas em conjunto. Como ele diz:  “Embriagamo-nos hoje em dia da mídia digital, sem que possamos avaliar inteiramente as consequências dessa embriaguez. Essa cegueira e a estupidez simultânea a ela constituem a crise atual.”

Para Han o antigo regime disciplinar, descrito por M. Foucault, ficou obsoleto e foi substituído por um novo modelo que entrou em vigência: o regime da informação, o dataísmo, o controle mediante a posse de dados. Os dados passam a exercer um papel preponderante e determinante no plano político. Amalgamados aos algoritmos, os dados passam a dominar tudo por meio da inteligência artificial.

Byung Chul Han retoma hipóteses levantadas por  J. Habermas, um nome de peso da Escola de Frankfurt, do livro “História e crítica da opinião pública – a transformação estrutural da vida pública”, publicado em 1962.  Nesta obra, Habermas descreve o protagonismo dos meios de comunicação eletrônicos e o modo como destruíram o discurso racional, antes determinado pela cultura do livro. O tempo do rádio e da televisão.

A ruptura com a cultura do livro promovia  um estado mental menos reflexivo e crítico, uma “mediocracia”, causada pela postura anfiteatral em torno do aparelho televisor, onde os espectadores estariam condenados à passividade e ao silêncio, sem poder expressar opinião. 

Diferentemente do público leitor, a audiência televisiva promoveu um retrocesso e uma recaída na imaturidade. Uma regressão cognitiva que  abriu o flanco para a transmissão de conteúdo político em tom diversionista. O debate sobre questões politicas adquire um tom de  espetáculo.

A democracia, nas palavras dele, fica reduzida a uma telecracia cujo mandamento supremo é o entretenimento. Nada de produção de conhecimento, o negócio é distração. Um bom exemplo é o patético mercenário vestido de “padre de festa junina” em um debate de candidatos à presidência da República. 

Como consequência, o que se observa é a regressão da inteligência e do juízo humano. Reduz-se o senso crítico e se mantém a audiência focada na imaturidade. Esta mediocracia, governo dos medíocres ou dos media, doravante só valoriza a encenação. Já não se dá valor aos argumentos, mas à performance e à emoção. E assim, o discurso degenera em espetáculo e em publicidade. E o conteúdo político permanece em segundo plano.

Para Han, a racionalidade tem sido ameaçada pela comunicação afetiva, haja visto a estridente cultura da lacração, dos memes e do Tiktok.  Não são os melhores argumentos que prevalecem, mas a informação que provoca a maior potencialidade de excitação, afirma. É o país na 5ª série.

Neste contexto de debilidade mental, a lógica não se sustenta e já não há mais fé nos fatos, Han chama de novo niilismo, pois não se trata de matar de novo a Deus, como Nietzsche, mas da morte do fato, da fatuidade e da verdade e a instalação do falso, da pós-verdade e da mentira.

Han extrapola a análise de Habermas, saltando dos meios analógicos dos aparelhos eletrônicos de sua época (rádio e televisor) para a exponencialidade acelerada dos meios digitais, especialmente o smartphone, com os enxames de influencers, youtubers e gabinetes de fake news, etc., hábeis na manipulação dos meios digitais, passam a submeter a esfera pública ao drástico cambio estrutural.

A esta etapa Han dá o nome de infodemia, a epidemia de informação sob a qual nos encontramos.  Sob o regime da informação, que flui aceleradamente, já não há espaço para a verdade. Ademais, o ritmo da verdade, que possui a firmeza do ser, lembrando Arendt, é lento, não se sustenta na aceleração.

Concluindo com palavras de Han, a verdade se desintegra em poeira informativa, arrastada pelo vento digital.

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O conteúdo e opinião publicados neste artigo são de inteira responsabilidade do autor ou autora.

Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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