O cruel ritual da miséria
Ela acorda às 4h da manhã para catar qualquer coisa que, por sorte, ao final do dia, lhe renda, pelo menos, o mínimo suficiente para comer naquele dia. O outro vive de catar mariscos à mercê da “mãe maré” – quando chove não tem pesca e, em casa, não se come. Vivem em ruas enlameadas, são humilhados nos postos de saúde e sua chance de estabelecer uma trajetória diferente na vida praticamente se anula diante de escolas sem professores. Atingidos em sua dignidade e estilhaçada a sua pouca esperança, esses eleitores se deparam com uma nova eleição no horizonte.
Se para alguns de nós, uma eleição é apenas mais uma eleição, dessas que sabemos, conformados, que por certo a maior parte das promessas não será cumprida, para uma grande parte da população, aquela que se debate cotidianamente com uma situação inimaginável para os mais favorecidos, uma eleição pode ter o peso da renovação da fé na vida. A fé, por vezes a única motivação que nos conforta enquanto sobrevivemos numa agonizante realidade. E os candidatos sabem disso. Ô se sabem.
Escutando, profissionalmente, muito de perto as populações, noto que, a dramaticidade do que é produzido a partir desse quadro se revela assombrosa, quando junta necessidade premente e cinismo eloquente. Promessas de campanha são feitas muitas vezes no único cômodo das casas, na sinceridade do olho no olho, diante da intimidade de uma xícara de café adoçado. O doce do café se convertendo em sabor de esperança e confiança de que as palavras ouvidas só podem ser verdades. Como não crer? Mais do que isso: como conseguir não crer, se acreditar é o único alívio possível?
Compra de votos? Como ousa alguém no conforto da sua bolha, criticar quem “vende” o seu? A dinâmica das eleições carrega o peso de todo esse contexto. Falar em propostas, muitas vezes, parece mera encenação. Brinca-se na verdade é com as emoções e com a repactuação da fé perversamente renovada a cada eleição. Promete-se o mundo, se negocia com o possível e o improvável até que todos se conformam: “se fizesse ao menos um pouquinho por mim já estava bom”. A cultura da mendicância se alimenta do desespero. O “rouba, mas faz” parece algo bem legítimo e é, propositadamente, manipulado e alimentado no inconsciente da população. Na reta final dos mandatos, candidatos à reeleição distribuem umas migalhas, que são devoradas com voracidade pelos revestidos do conformismo, próprio daqueles que aceitam ter desejado muito além do merecido. Convencidos da sua invisibilidade e inutilidade, parecerá sempre que um pouquinho já lhes é o justo. Precisam se convencer disso. Precisam se contentar com isso. Afinal, perder a fé é perder o rumo da vida, perder o prumo e a força de seguir… até a próxima eleição.
Karin Koshima
karin@recomendapesquisas.com.br
Karin Koshima
Colunista
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