O elefante no labirinto

mar/2021

Dizem por aí que psicoterapeutas e escutadores desenvolvem com o tempo orelhas de elefantes e são capazes de captar sons de baixa frequência, a longa distância. Eu conhecia outro extraordinário talento dos elefantes: sua habilidade de ler o chão, interpretar sinais por meio das vibrações emanadas no solo. Podem até antecipar a presença de água a léguas de distância bem como a proximidade de outras manadas.

Minhas orelhas de elefante tem captado sons de baixa frequência ultimamente nesta longa quarentena. Os afetos e as emoções copiaram o vírus e também andam sofrendo mutações. A prova disso foi uma longa conversa que tive neste mês de março – mês da mulher – com Conceição, uma pessoa casa cheia, profissional de enfermagem talentosa e gestora de organizações de saúde com carisma e competência. Proativa e pragmática, ela é dona daquele atributo que os livros de biologia dão às enzimas: catalisar. No mundo empresarial, isso se traduz em sinergia, cooperação e cargos de liderança. Logo virou gerente em hospitais de referência e a novidade é que estava à frente de duas unidades de atendimento do COVID, ambas superlotadas e sob máxima pressão.  

Ela me convocou pelo celular com o intuito de conversar, precisava de um ombro amigo e de confiança para desabafar. Apelou para nossos tempos de estudantes de um doutorado em Saúde Pública, décadas atrás, onde firmamos uma boa amizade nas cantinas e nos seminários. 

Concordou que seria em meu consultório, deixando claro que não seria sessão de psicoterapia, obviamente. Levei um susto ao rever minha amiga, após tanto tempo, com a fisionomia abatida, visivelmente estressada, mas com a mesma voz possante que trazia alegria ao nosso reencontro. Nada de abraços e nem toques, o mar não está para peixe, disse ela, enquanto tirava os sapatos e lambuzava as mãos de álcool em gel. 

Observou o consultório atentamente, livros, objetos, quadros, e avançou na direção de uma poltrona, sentou-se, calada, de repente, olhando o chão. Era um corpo sugado, exaurido, desvitalizado, retorcido, olhar enlutado, expressão de medo. Ofereci um cafezinho, preferiu água gelada. Ficou com a cabeça baixa, mirando a água no copo em sua mão, tomando goles com o deleite de quem sofreu afogamento. Deixei o silencio reverberar: elefantes distinguem mais de cinco mil silêncios e sabem pisar devagar quando se deparam com o silêncio que antecede um portal, um deserto ou uma epifania.

Perguntei por sua família, marido, filhos, todos bem, ela dispensou formalidades e começou a falar, a falar sem parar, sobre sua luta e labuta na guerra contra o vírus, como uma sobrevivente de campo de batalha, queria dar testemunho do horror, o vírus assassino, que venceu a parada, suas variantes de transmissibilidade alucinantes, da negligência com as testagens,  do contágio que já excedeu todos os nossos limites de controle, que perdemos a guerra e não há como aumentar o número de leitos e impedir a superlotação das unidades, não existe comitê de crise, não existe inteligência na retaguarda, o colapso de recursos humanos é crucial, os técnicos despreparados, os jovens recém formados atiçados nas engrenagens de moer gente, sem falar de gente má, irracional, primitiva, desinteligente, negacionista, alienada, colegas prescrevendo medicação sem benefício, parceiros de trabalho negligentes com protocolos, colapso de insumos, o fim do estoque de sedativos e bloqueadores musculares, das bombas de infusão e dos ventiladores, as prateleiras vazias, sem anestésicos, cilindros sem oxigênio. Ela falava sem parar.

Mencionou o alto contingente de infectados, dos doentes identificados com o número dos leitos, leito da enfermaria tal, pacientes despojados de nome, antecedentes, história, sem o consolo das visitas e sendo cuidados por gente sem rosto, sempre paramentada da cabeça aos pés e máscaras protetoras. Escutou de uma paciente de meia idade que ela jamais tinha sentido a dor da solidão, que sofria de falta de ar nos pulmões e outra asfixia, em desamparo absoluto. Como ela suportava tanto estresse?

Confessou cansaço, esgotamento mental e emocional, falou da dor e seu luto pelos óbitos de colegas próximos por Covid e do seu luto por colegas competentes, afastados por burnout, do  maior sofrimento de todos que é a sensação de enxugar gelo, de se sacrificar por nada, do   trabalho sem sentido, do colapso de recursos humanos e de insumos, mas do colapso do pacto social, isto é, de não sentir mais reconhecimento e respeito pela área de saúde. 

Em um dos hospitais onde trabalha, Conceição criou um ritual de sobrevivência. Em silêncio, após se desparamentar, sobe ao terraço onde por alguns minutos admira a baía de Todos os Santos, enche seus pulmões com o aroma do mar, escuta as ondas enquanto muitas vezes desaba, chora, receosa de carregar o vírus para sua família, de estar a caminho do burn out, mas o abraço do mar a consola. Até que sua contemplação é quebrada pelas luzes das ambulâncias em fila, à entrada do hospital, luzes intermitentes de ambulâncias mudas, que soam para ela como sirenes em súplica, pedindo socorro: me acolha, me receba, me atenda. É quando ela se refaz e decide seguir em frente.

Ela me reportou à intimidade do caos de um país gerido pela mentira, pela ganância e pela ignorância. Como um elefante no labirinto, tateando o chão atrás de saída e luz, eu me perguntava como enterrar tantos mortos, como processar tantas perdas, como medir o tamanho de tanta desolação? Os processos de luto já não fazem a conversão de sofrimento em aceitação. É preciso reinventar o luto neste momento em que viramos automóveis no acostamento, sem combustível, sem poder ir adiante, com os destinos em suspensão. Se o luto carece do reconhecimento do que foi perdido, como calcular o tamanho da cratera e de toda esta devastação?

Ao nos despedirmos já nos sentíamos como os velhos colegas de cantina do campus. Eu fiquei impactado com o relato daquela alma em combustão. Ela me agradeceu enfaticamente o ombro, o silêncio, a escuta e a atenção. Disse que eu lhe dei um respiro. E partiu. 

Lembrei dos elefantes e de um artigo publicado na revista britânica New Scientist.   Pesquisadores conseguiram isolar um som de baixa frequência emitido por eles para alertar seus congêneres sobre a presença de leões. Reproduziram a gravação em outra região, onde se concentrava outra manada. Os pesquisadores ficaram perplexos com a reação dos animais após ouvirem a gravação. Primeiramente, ficaram estáticos, escutando e processando os sons, sacudindo as orelhas. Em seguida, formaram uma roda – um círculo protetor – agrupando-se com os filhotes e os mais frágeis ao centro, protegendo-os.

 

Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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