O militante substituiu o eleitor

set/2019

Dá pra dizer que, em tempos de normalidade, a relação da sociedade com os governos sempre foi meio “ele lá, eu aqui”. Isto é, o vínculo do voto, de um modo geral, esteve limitado à delegação do poder a alguém capaz de gerar alguma expectativa (tradicionalmente, desconfiada) do cumprimento de certas promessas de campanha. Seguida por uma natural e latente disposição para a crítica. Afinal, está instalado em nossa cultura que um governo dificilmente consegue dar conta da maior parte das demandas de seus eleitores.


E, assim se ia levando a vida, ora compreendendo, ora duvidando, ora reclamando… Até o próximo pleito.


Da eleição de Lula pra cá, esse panorama teve uma mudança dramática. O eleitor, tradicional descrente na política, resolve apostar na pessoa de um político. E o populismo, adormecido desde Getúlio Vargas, renasce com força. É verdade que Fernando Collor tentou ressuscitá-lo antes, mas não teve sucesso. Lula, pelo contrário, soube alimentar a criatura com eficiência, mantê-la viva e ativa por dois governos e ainda enfiá-la goela abaixo de todos, quando da eleição e da reeleição de Dilma. Com isso, o tanto de racionalidade que, mesmo muitas vezes disfarçada de esperança, conduzia as decisões dos eleitores, foi sendo substituída por um ascendente e raivoso exercício de militância. Por mais que se queira atribuir a Bolsonaro a implantação de um permanente estado de confronto, o atual presidente apenas inverteu a mão do “nós x eles”, estimulado a partir de 2002. Uma militância aguerrida levou Lula ao poder e depois a Dilma. Uma militância aguerrida elegeu Bolsonaro, aproveitando que Dilma, embora tenha herdado a presidência, esteve muito longe de herdar o “culto à personalidade” dedicado a Lula. Guardadas as devidas proporções e circunstâncias, é mais ou menos o que ocorreu entre Chávez e Maduro, na Venezuela. A diferença é que Maduro resolveu ficar no poder na marra, enquanto Dilma foi, digamos, retirada do poder na marra. Com consequências evidentemente diferentes aqui e lá. A imposição de Maduro levou a Venezuela a uma profunda deterioração da democracia; no Brasil o eleitor teve a oportunidade e resolveu, democraticamente, trocar de populista. Por uma razão relativamente simples: em 2018, Dilma, como Temer, já não significavam nada no imaginário popular e o candidato natural à vitória – Lula – estava fora de combate. O que sobrou? O populista da vez. Se Bolsonaro era de direita ou de esquerda, pouco importou. Falar em voto ideológico no Brasil é piada. A questão que fica é se há alguma chance de, em 2020, ser resgatada alguma racionalidade eleitoral anterior a 2002 ou se vamos continuar instrumentalizando o fanatismo cego insuflado no eleitor brasileiro.

 

Karin Koshima
karin@recomendapesquisas.com.br

 

 

Karin Koshima

Karin Koshima

Colunista

Diretora Executiva da Recomenda Pesquisas & Consultoria – especialista no comportamento do consumidor, eleitor e posicionamento de marcas. Às informações derivadas das pesquisas, agrega consultoria em planejamento, estratégia e marketing. Se formou em psicologia na UFBA, é psicanalista com especialização em Psicologia pela USP (São Paulo), também Mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia.
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