O rosto autoritário do poder no Brasil
Outro dia, conversando sobre cultura e poder num workshop de lideranças com jovens executivos, comentei sobre as Capitanias Hereditárias e seus capitães donatários, um cargo administrativo do feudalismo tardio português atribuído a membros da nobreza que, por meio de carta de doação e de documento foral, assumiam direitos e deveres sobre determinada capitania. Foi a primeira expressão do poder gerencial na história do país e instituiu uma genética de arbitrariedade e autoritarismo.
A maioria desses capitães-donatários pertencia à Casa Real portuguesa e a doação das terras era uma maneira de premiá-los por seus serviços à Coroa. Eles recebiam do rei plenos poderes administrativos, judiciais e fiscais, sendo a autoridade máxima nas respectivas capitanias. Era seu dever conquistar as terras, povoar, selecionar os colonos mais leais e repartir com eles as sesmarias, explorar economicamente recursos naturais, defender o território do ataque dos indígenas e manter a ordem, aplicando justiça, mesmo com arbitrariedade e violência.
Fatiando as capitanias, os senhores distribuíam enormes extensões de terra para serem administradas por homens de sua confiança que contavam com o auxílio de capatazes e feitores, homens livres contratados com a função principal de vigiar, controlar a produção e punir os escravos com o uso da força.
Somando fatores como a distância da metrópole, a dificuldade no trato com os escravos, a resistência dos indígenas, a precariedade do transporte, etc., foi se concentrando um Poder Local extremamente forte e arbitrário, hábil no emprego da força e da coerção, que deu régua e compasso para a formação de vilas e municípios no interior do país, menos como unidades políticas e mais como meras extensões das propriedades dos senhores.
Os potentados rurais, expressão cunhada por Raymundo Faoro, eram este amálgama de propriedade privada e município, que desde os tempos mais remotos passaram a contar com a proteção das milícias. Os Senhores de Terra eram ao mesmo tempo prefeitos e políticos e também poderiam ser Oficiais de Milícias. Coronéis, suas cabeças haviam sido coroadas.
Esta promiscuidade castrou, desde sua gênese, o surgimento da dimensão política dos municípios e deixou claro que “a relação senhor-escravo e a dominação patriarcal minaram os próprios fundamentos psico e sóciodinâmicos da vida moral, política e institucional de nossa sociedade”, conforme interpretação de Roberto DaMatta em A casa e a rua.
O antropólogo traduz o jeitinho brasileiro como uma reação ao esvaziamento do poder do indivíduo no Brasil, transformado em elo frágil, condenado à exclusão e à pobreza. O imperativo de “dar um jeito” e deixar de ser indivíduo o incita malandramente a tornar-se pessoa, isto é, passar a integrar uma rede de relações de amigos, contar com benefícios e proteção. É sua interpretação:
“O núcleo familiar centrado na figura do patriarca é dirigido por princípios de laços de sangue e de coração. Por conseguinte, nossa unidade básica, não está não está baseada no indivíduo, mas na relação. O que vale aqui não é a figura do cidadão, mas a malha de relações estabelecidas por pessoas, famílias e grupos de parentes e amigos. ”
Sucessores dos donatários, os senhores exigiam submissão e lealdade de seus colonos e meeiros. E cobravam fidelidade aos pistoleiros, leões de chácara, jagunços e capangas. Por sua vez, a tropa miliciana também se achava no direito de reproduzir a cultura da truculência com demonstrações de poder arrogante, abusivo, brutal e sem receio dos limites das instâncias de controle externo.
O imaginário do coronel é composto por traços absolutistas. Engendrou uma cultura de poder baseada na prepotência, na concentração e centralização das decisões, no personalismo ou na confiança em redes de relações, na arbitrariedade, no enfático paternalismo e no nepotismo esclarecido, além de um psicopatológico traço religioso de messianismo, sem mencionar o kit composto de truculência, ameaça de castigo, promoção do medo, amparado pela militarização crescente da tropa de jagunços e capangas.
A Guarda Nacional Brasileira, por sinal, nasceu das milícias. Vários jagunços e seus descendentes viriam a se tornar os prestigiados coronéis e senhores totais nos séculos do Império e da República, 19 e 20. Eliminaram os antigos senhores e ficaram com suas Terras do Sem fim.
E assim, a cultura autoritária se repetiu em outros ciclos econômicos, baseados em outras lavouras: os coronéis do café de São Paulo e Rio, do gado, em Minas, da borracha da Amazônia, do charque dos pampas gaúchos, do açúcar no Nordeste e da saga do cacau da Bahia tão bem descrita por Jorge Amado. O escritor baiano criou um personagem que pode ser o porta voz do espírito autoritário, o Coronel Jesuíno. É ele que adverte a sua esposa, dona Sinhazinha, no romance Gabriela, cravo e canela:
“- Vá para o quarto, se prepare e me espere. Esta noite eu vou lhe usar. ”

Carlos Linhares
Colunista
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