O toque de Midas
Midas, o rei da Frígia, foi um monarca que gozava da fama de ser então o homem mais rico do mundo. No salão dos tesouros do seu palácio acumulava arcas e arcas empanturradas de moedas e barras de ouro, prata, joias e pedras preciosas. Talvez Walt Disney tenha se inspirado nele para criar Tio Patinhas, ambos possuíam a estranha mania de esfregar a pele no ouro, de mergulhar em montanhas de moedas, sentindo o prazer de passar horas ali em contato físico com moedas e barras de ouro. Como Patinhas, Midas queria mais e mais concentrar poder e riqueza e bradava aos quatro cantos do seu reino sua ambição e seu desejo por ouro.
Era um tempo em que os deuses andavam próximos das criaturas e o deus Dionísio ouviu a história de Midas e desejou conhecer aquele rei ambicioso e tocado pela cobiça. Midas, quando o viu, sem meias palavras, lhe pediu o dom do Toque de Ouro:
– Oh divino Dionísio, peço que tudo que eu toque se transforme em ouro.
– Você deseja mesmo este dom? O poder de transformar tudo em ouro? – questionou.
– Sim, é o meu desejo, tenho absoluta certeza. – afirmou.
– Então está bem, consentiu a divindade, escondendo sua indignação com tamanha usura. Você terá o dom do Toque de Ouro. Em seguida, partiu.
Midas, em transe, experimentou seu extraordinário poder com absoluta euforia. Tocou numa imensa porta de madeira e tanto ela como as pesadas chaves de bronze já haviam sido metamorfoseadas em ouro. Disparou pelos corredores do palácio, sem caber em si de tanto contentamento. Dirigiu-se ao jardim, tocou árvores e flores, maravilhado. Tudo se transformava em ouro.
Mergulhou sua mão no lago e viu peixes e sapos convertidos em joias. Um bosque inteiro virou ouro. Uma lâmina cortante feriu seus calcanhares, eram as folhas da grama que sangravam seus pés. Que importava? Que lhe importava que o jardim, antes tão colorido, agora estava reduzido somente à cor do ouro? E daí que as flores não mais exalassem perfume e o vento, ao sacudir as folhas, produzisse um som metálico, estridente e ensurdecedor? Estava inebriado por ter sido contemplado com a maior dádiva dos deuses.
De volta ao palácio, ordenou aos criados que preparassem um banquete comemorativo com grande pompa, iguarias finas e vinhos raros. À hora do brinde, convidados à mesa, ergueu sua taça e ela imediatamente se transformou em ouro, causando admiração entre os presentes.
Todos beberam, menos Midas, pois o vinho havia se convertido em ouro sólido, assim como a comida que em vão chegava em sua boca. Sentiu então fome e sede. Niobe, seu gato de estimação, e Ajax, seu cão fiel, pularam e lamberam seu amado dono – e viraram duas estátuas douradas.
Angústia e desespero então se apossaram de Midas. Possuía o Toque de Ouro, mas morria de sede, fome e medo por não mais poder ser tocado. Soltou um grito de amargura quando percebeu que sua filha adorada, Phoebe, vinha em sua direção, para abraçá-lo. Por mais que se esforçasse em afastá-la, ela o tocou e imediatamente se transformou em uma estátua de metal. E todos os convivas, estarrecidos e com medo, se afastavam do rei.
Midas se lançou ao solo, em prantos, pedindo clemência aos deuses. Caiu em si e percebeu seu engano. Era o rei mais rico do mundo e o mais miserável dos seres humanos. Possuía terras, palácios, tesouros, exércitos, poder, mas perdera sua filha amada e seus bichos de estimação, sofria de fome e sede e morria de medo e de solidão.
O divino Dionísio então reapareceu e o viu o rei de joelhos, em prantos, suplicando-lhe que suspendesse o dom do Toque de Ouro. Dionísio olhou no fundo nos seus olhos e enxergou com tristeza o futuro da humanidade, viu a herança de Midas espalhada por todos os cantos da terra, a armadilha da cobiça e da usura dizimando florestas, tribos nativas, poluindo oceanos e rios, devastando matas para plantar commodities e controlar algoritmos do ouro. Acredito que viu Brumadinho e o Rio Paraopeba dizimado pela lama tóxica.
O rei nu aos seus pés demonstrava a ignorância da usura e a estupidez da avareza cujo toque converte tudo em ouro de tolo.
Após constatar que havia sinceridade no discurso do rei, acatou sua súplica e suspendeu o castigo. Mas impôs uma condição: aprender a conjugar um verbo secreto.
Um imenso arco-íris se formou sobre o palácio, seguido de uma luz forte. Quando Midas abriu os olhos, estava à mesa ao lado da filha, Phoebe, que lhe falava e tocava, afetuosamente. Ajax, seu cão, lambia sua mão e Niobe ronronava no seu colo.
Era toque do outro que lhe enchia de riqueza e valor.
Pediu aos criados apenas pão e água fresca para matar sua fome e sede com o essencial. O salão foi invadido pelo canto dos pássaros que retornavam ao jardim junto com o perfume das flores. Em seguida, convocou os súditos mais pobres e, atendendo ao conselho do divino Dionísio, abriu seu tesouro começou a conjugar o verbo compartilhar.

Carlos Linhares
Colunista
Não aperte a minha mente: saúde mental em tempo de urgência
O tempo está passando muito veloz, a velocidade é o novo valor, virou uma commodity, a regra do quanto mais rápido melhor se consolidou. Não apenas comemos fast food, como também escutamos música e recados no WhatsApp de forma acelerada. E há quem assista filmes em...
Economia da Atenção: como o universo das telas deteriora nossa saúde mental
Repare que a dama do meme que ilustra este texto mal consegue sustentar os coraçõezinhos vermelhos. A Deusa dos likes e das curtidas expressa contentamento e ar de triunfo, afinal recebeu o reconhecimento esperado e capturou a atenção de quem a curtiu. Ela não faz...
Os saveiros e a aceleração social do tempo
Um dos produtos mais misteriosos que os mestres de saveiros transportavam nos barcos ancorados no Porto da Barra de minha infância era o Tempo. Traziam todo tipo de mercadoria para abastecer a feira livre do bairro, vindos das mais longínquas praias, muito além da...
Pensamento crítico e inteligência artificial
Era o Reino das Matemáticas, no curso de Tecnologia da Informação. Foram vários semestres ao longo de quatro anos, diferentes turmas, mas em cada uma fui recebido com um misto de cordialidade e desconfiança. Temiam que a disciplina de Psicologia fosse perda de tempo...
Inteligência Artificial e Ética: como retornar os dinossauros ao Jurassic Park?
No primeiro filme da série Jurassic Park (Steven Spielberg, 1993) três cientistas – dois paleontólogos e um matemático – recebem autorização para visitar a ilha secreta de Nublar onde se desenvolvia um experimento de segurança máxima, sob controle do Governo...
A solidão é fera, a solidão devora
...é a amiga das horas, prima-irmã do tempo, faz nossos relógios caminharem lentos, causando um descompasso em nossos corações. Não tem IA nem Chat GPT que consigam criar versos tão precisos para expressar a dor da solidão como estes do poeta Alceu Valença, salve! Há...
junte-se ao mercado