O tsunami, os elefantes e o futuro do trabalho
Moradores de zonas afetadas recordam que, dias antes da calamidade dos tsunamis na Tailândia, observaram as aves mais inquietas, voando em círculos, cães nervosos, latindo e correndo estranhamente de um lado a outro e o sumiço dos gatos de estimação. O que estaria acontecendo com a natureza naqueles dias? Os moradores sobreviventes que testemunharam o tsunami lembram também de terem visto elefantes subindo para o alto das colinas, com trote apressado. Por que não decifraram a mensagem dos elefantes?
Antes da muralha de água ser avistada ao longe, viram o leito seco das praias exposto e toda a água da orla ser repuxada e sugada para dentro do mar profundo para depois retornar, sob a forma de vaga implacável, carregada de caos, destruição, causando a morte de milhares de pessoas, deixando enormes prejuízos à sociedade local, à economia, aos ecossistemas, desmantelando a estrutura básica e todo o desenvolvimento humano.
Foram muitos sinais e prenúncios da natureza, mas o homo sapiens não decifrou os indícios de risco iminente. Permaneceu absorto em suas rotinas, desprezando os sinais de perigo. Por que não captaram o recado vindo dos animais?
A imagem do tsunami tem sido recorrente ao se tratar dos impactos da era digital no mundo do trabalho. As mudanças já estavam em curso desde os tempos da reestruturação produtiva, dos processos de terceirização, das modas da reengenharia e qualidade, etc., mas, desta vez, houve um salto exponencial. Para o economista Klaus Schwab o tsunami atual, marcado pela força das tecnologias digitais emergentes, veio com uma aceleração alucinante, jamais sentida antes. Atinge o emprego e trabalho com a mesma fúria dos tsunamis da Tailândia e do Japão. E chegou com uma velocidade absurdamente diferente das três ondas anteriores.
As grande revoluções tecnológicas deixaram cicatrizes nos processos de trabalho. A 1ª onda, com a máquina a vapor, a 2ª, com o potencial da eletricidade e a 3ª, com o início da informática, em todas três ceifaram-se empregos, profissões desapareceram, estruturas organizacionais novas foram implementadas, redesenharam-se mercados e houve mudança nas expressões do poder.
Para o historiador Yuval Harari, um dos elefantes sábios do presente, a sensação de catástrofe iminente é exacerbada pelo ritmo acelerado de disrupção tecnológica. Para ele, a mudança atual é mais vigorosa:
“A revolução da automação fará com que muitos empregos desapareçam. A questão é se poderemos sustentar a vida das pessoas e seu desenvolvimento espiritual e emocional sem esses empregos. Muitos empregos – talvez a maioria – que existem hoje não merecem ser defendidos.”
O sociólogo Bauman também antecipou o desmantelamento do mundo do trabalho. É dele a afirmação de que “os robôs não terão sindicatos”, deixando nas entrelinhas a presente debilitação política. Bauman, um elefante sábio e ancião, muito antes do tsunami digital tomar potência, já vinha alertando do alto das colinas que era necessário nos protegermos. É ele que adjetiva os fenômenos sociais presentes com o termo “líquido” para expressar a atual diluição e fluidez do que antes era sólido e perdeu consistência – como as relações trabalhistas. Os vínculos de emprego tem sido progressivamente mais precarizados, pejotizados e uberizados.
O tsunami passou e continua passando. O mundo do trabalho pena entre a admiração e a resistência. Admiração pelas vantagens obtidas com os smartphones, mídias sociais, drones, robôs, gadgets, etc., de um lado. Do outro, o pavor do enxugamento das fusões de empresas, dos cortes, a angústia, a apreensão e a sensação de imprevidência. Se eram 6 milhões de desempregados em 2014, no Brasil, agora, em 2019, são 13 milhões fora dos postos de trabalho.
Mesmo que o país retome o crescimento, outro problema vai desafiar o mundo do trabalho: as mudanças rápidas e radicais por causa da tecnologia. Com a transformação digital a empregabilidade foi descontinuada. Os efeitos da disrupção alteraram também o sentido subjetivo do trabalho. É preciso de um tempo de transição para a aprendizagem, a compreensão e a celebração dos ritos de passagem.
O momento é de compartilhamento e, para usar os jargões das startups, de criação e redesenho de competências para lidar com estruturas organizacionais inovadoras, novos scripts de liderança e “nova autoridade”, na expressão do sociólogo Richard Sennett, um adorável elefante.
Que a onipresença e a onisciência da nuvem da tecnologia não joguem pra escanteio a criatividade do homo sapiens. Continuaremos sempre seres de linguagem, cultura, afeto e, sobretudo, o homo sapiens é um zoon politikon, um animal político, como dizia o mestre elefante Aristóteles.
Vamos abraçar os três “e” que os robôs, por enquanto, ainda não podem replicar: a ética, a empatia e a emoção. E sempre subindo as colinas, atrás dos elefantes.
Carlos Linhares
Colunista
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