Os Jogos Olímpicos de Tóquio e a Rosa de Hiroshima

ago/2021

A cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos de 2020 me deixou impactado.  Sem clima de festa, sem estardalhaço, sem público, o evento transcorreu sereno como uma liturgia minimalista e intimista, com performances enraizadas em valores ancestrais.

Os organizadores do evento decidiram reverenciar os mitos e os valores da cultura milenar japonesa e honrar os ancestrais. Deram voz aos nativos de tribos originárias de quatro cantos daquele arquipélago. Causou espanto para muita gente ouvir suas vozes entoando mantras, ritmos e cânticos numa festa tradicionalmente modelada pelo marketing, pela exaltação ufanista e com toada narcisista.

Parecia que o país do Sol Nascente deveria transformar a olímpica frustração em um resgate de sua sabedoria. Se os Jogos fossem realizados em um período normal, segundo estimativas do Comitê Olímpico Internacional, o Japão teria recebido 5 milhões de pessoas de todo o mundo. E as arquibancadas não estariam vazias como naquele evento de encerramento em 8 de agosto de 2021.

Não sei porquê a atmosfera grave do evento me remeteu à tragédia de Hiroshima, em 6 de agosto de 1945 e me recordou a letra da canção de Vinícius de Moraes cantada divinamente por Ney Matogrosso. Poema tocante e inesquecível. Cantemos.

 

Pensem nas crianças, mudas, telepáticas
Pensem nas meninas, cegas, inexatas
Pensem nas mulheres, rotas alteradas
Pensem nas feridas, como rosas cálidas

Mas, oh, não se esqueçam da rosa, da rosa
Da rosa de Hiroshima, a rosa hereditária
A rosa radioativa, estúpida e inválida

A rosa com cirrose, a anti-rosa atômica
Sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada.

 

A rosa, a flor predileta dos poetas, por sua delicadeza, perfume e beleza serviu de inspiração para ele compor sua Rosa de Hiroshima, um texto imenso de compaixão, um lamento pacifista. O aspecto da explosão atômica sobre Hiroshima fez surgir uma rosa radioativa.

O poeta celebra a dor e o sofrimento de mulheres e crianças feridas e as cicatrizes perversas deixadas pelas anti-rosas em Hiroshima e Nagasaki, as duas cidades míticas do Japão, pioneiras neste sofrimento estendido por muitos anos depois, nos corpos dos habitantes civis indefesos, na fecundidade das mulheres e no futuro de crianças.  Rotas alteradas, escreve Vinícius, profetizando os efeitos dessa prolongada radioatividade de Tânatos em crianças, vítimas inocentes do conflito entre nações. 

A sacralidade da cerimônia de encerramento me lembrou leituras do mitólogo Mircea Eliade e sua compreensão dos ritos sagrados. Para ele o universo religioso sempre envolve a noção de sagrado e de profano e a experiência religiosa acontece através do símbolo, do rito e do mito. Sagrado, segundo Eliade, é todo aquele espaço, objeto, símbolo, que tem um significado especial para uma pessoa ou grupo.

Fiquei me perguntando como e por quê naquela festa profana, em uma das culturas mais tecnológicas, racionais, ricas e inovadoras do planeta, se optou por convocar os mitos e trazer de volta a dimensão do sagrado.    

Aquela cerimônia olímpica de encerramento deixou claro que a logística e a execução do evento exigiram dos responsáveis e executantes uma coragem imensa e muita fibra e determinação em sua realização. Os orçamentos explodiram, houve prejuízos absurdos, os atritos políticos produziram faíscas que se alastraram. E cabeças rolaram.

Além de tudo, o fim da festa aconteceu dois dias depois do Dia de Hiroshima. O Comitê Olímpico, insensível e imperdoável, vetou o minuto de silêncio solicitado pelos organizadores dos Jogos para recordar os mortos pela anti-rosa estúpida e inválida.

O evento aconteceu apenas dois dias depois do Dia Nacional de Hiroshima, data de luto e de afetos, sentimentos e emoções voltados ao luto pelas 250 mil vítimas das anti-rosas atômicas e um número prolongado de vítimas da rosa hereditária, dos efeitos da radioatividade na genética. 

Fiquei muito emocionado com a execução do Clair de Lune, de Debussy, remetendo à Paris, cidade para aonde seguem o espírito e o fogo sagrado dos deuses do Olimpo. Em seguida, uma imagem sublime, a chama olímpica foi diminuindo e se esvaindo dentro da pira olímpica em forma de flor cujas pétalas se encerraram lentamente, transformando-se em esfera, a forma da casa comum, a Terra. 

O desfecho do evento veio com o convite para todos assistirem aos Jogos Paralímpicos. E por isso foram projetadas cenas dos corpos dos paratletas em movimento, os corpos em ação destes magnos mestres da resiliência: nadadores sem braços, corredores sem pernas, atletas sem visão ou sem escuta, competindo com suas próteses e disputando a bola pelos guizos ou as lançado em cadeiras de rodas.

Os ritos com densidade não carecem de muitos signos para nos arrebatar.

E os paratletas sabem que o fogo dos deuses olímpicos arde em quem enfrenta as rotas alteradas.

Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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