Para além do Novembro Negro
No último dia 14 de setembro, a imprensa negra no Brasil comemorou seus 190 anos. Trata-se do dia em que o primeiro periódico negro circulou no país. O jornal o “O Homem de Cor” foi criado e protagonizado por pessoas negras no Rio de Janeiro em 1833. O portal de notícias Alma Preta lançou um manual de redação antirracista para jornalistas e quem mais se interessar por atuar na comunicação de forma inclusiva, democrática e diversa. Fui impactada por essa notícia, assisti à “live” de lançamento deles e fiquei pensando quando nós publicitários vamos encarar de frente essa questão do antirracismo também com um manual de redação e semiótica sobre o tema.
Muitos dirão que é quase impossível ter esse tipo de manual, que não somos uma profissão organizada, que o cliente sempre tem razão, e ele não se enxerga racista, então, esse assunto sempre será proibido de ser sequer levantado em uma reunião quando estamos discutindo um briefing, ou um debriefing com quem paga as contas e não gosta de ser incomodado com esse assunto que gera desconforto.
Essa relação que muitos têm de subserviência na comunicação é o que permite, na minha leitura crítica de mundo, que continuemos tendo um país racista e que não deseja enfrentar de forma clara e objetiva essa questão. É óbvio que não posso esquecer que estamos a 2 meses do mês de novembro, e, quando esse mês de luta política chegar, é politicamente correto as empresas e governos se posicionarem como sendo marcas *que estão na luta.
Veremos* posts de todos os lados falando sobre o tema, veremos agências de comunicação e publicitários apresentando suas campanhas que podem vir a ser premiadas, o que mais ocorrer na época que possa dar visibilidade, gerar impacto e o que os algoritmos (que não são racistas #sqn) permitirem naquele período chegar em nós aficcionados em viver nas redes sociais na busca por curtidas e comentários.
Em um mundo onde cada vez mais falamos de educação midiática, onde está nossa educação para tratar dessa questão na propaganda? Será que educação midiática é apenas falar sobre fake news e desinformação? Quando criamos e aprovamos campanhas que não representam a realidade social, estamos produzindo fake news e ajudando na desinformação? Se a propaganda é uma ferramenta que dialoga com a sociedade todos os dias e que procura se utilizar de figuras de linguagens, imagens, textos persuasivos para apresentar suas ideias, oportunidades e vender muito, por que em nosso dia a dia temos tanto medo de refletir em parceria com nosso cliente sobre esse tema que é primordial para a sociedade? Será que basta dizer que a propaganda tem pessoas negras e/ou indígenas nas peças publicitárias?
Lembro de estar na faculdade e passar a ser obrigatório ter pelo menos 30% de negros nas peças publicitárias. Hoje, continuamos com esse percentual para cumprir tabela ou ampliamos essa presença por entender que a população negra é a maioria da população de nosso país segundo dados do último censo? E quem cria essas peças? Quem produz as ideias? Você já parou para pensar que a publicidade brasileira é conhecida no mundo como sendo extremamente criativa e que esse suor é negro, mas que não estamos nas fichas técnicas? Se o racismo é estrutural e as empresas, independentemente do tamanho, afirmam em suas missões e visões que são diversas, inclusivas e que trabalham em prol da equidade de gênero, por que encontramos tanta dificuldade em tratar do tema racismo em nossas campanhas? Se o racismo é uma relação de dominação e poder, que dia essa luta na comunicação, em especial na publicidade, será uma luta de todos?
Pois, por experiência, posso afirmar que fazer campanha no mês de novembro é fácil, difícil mesmo é criar de forma antirracista todas as campanhas no decorrer do ano. É dificil, porque muitas vezes precisamos lembrar aos nossos pares que os negros são bonitos, inteligentes, poderosos o ano todo, que os estereótipos de um roteiro precisa ser revisto e que ser vigilante cansa, quando não temos aliados na hora da criação das campanhas. Ser uma publicitária negra, com um desejo real de transformação da sociedade, através da propaganda, é extremamente solitário. É necessário entender que nossas conversas sobre inclusão perpassa por todas as áreas da comunicação e que a publicidade não pode mais ajudar a tapar o sol com a peneira.
Não basta mais ter apenas a intenção, precisamos das ações. As empresas de comunicação precisam tratar do assunto internamente, compreender, escutar quem vive o problema, aceitar que existe sim racismo em nosso país e que ele também está na estrutura delas e nas empresas que as agências atendem e, por esse motivo, começar a tratar do assunto com seus clientes é urgente. Sei que é doloroso, que dá medo de perder a conta, mas a outra opção, em minha avaliação a curto prazo é pior. É continuarmos tendo uma sociedade parada no tempo, pensando dentro dos privilégios da branquitude que tem medo de perder a vaga para um cotista ou que acredita que a discussão sobre ter uma mulher negra no STF é uma questão identitária, que elas podem esperar.
Como nós publicitários amamos usar termos em outras línguas, dessa vez sugiro que pensemos sobre o termo alemão chamado de zeitgeist, que significa de forma simples e direta, espírito do tempo ou um sinal dos tempos. E nos tempos atuais urge que essa decisão de ser antirracista seja diária para todos nós da comunicação e em especial para nós publicitários que somos cool e que ainda hoje gostamos de dizer que somos descolados como na década de 70. Que o zeitgeist que vivemos hoje em 2023, seja capaz de realizar as transformações necessárias em toda a cadeia produtiva da publicidade. Que todos possam ter voz, protagonismos de marca e de pessoas, para além do Novembro Negro.
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O conteúdo e opinião publicados neste artigo são de inteira responsabilidade do autor ou autora.
Mirtes Santa Rosa
Colunista
Publicitária formada pela Ucsal, Especialista em Comunicação e Gerenciamento de Marcas pela FACOM – UFBA. É uma das idealizadoras e Hosts do Umbu Podcast e do portalumbu.com.br, CEO da Umbu Comunicação & Cultura e acredita todos os dias em comunicação inclusiva, anti racista e democrática.
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