Por uma filosofia afrofuturista da inovação

nov/2022

Não há oposição entre tradição e inovação. Há muita conexão

 

(Crédito: Divulgação/Marvel)

 

No último domingo, assisti pela segunda vez ao filme “Pantera Negra: Wakanda para Sempre”. Da primeira vez, me atentei à qualidade técnica da produção, fui fisgado por seu enredo, e torci para ver uma mulher como uma Pantera Negra. Quis assistir uma segunda vez para me atentar às nuances da narrativa, as mensagens colocadas de forma magistral nas cenas e diálogos, e as conexões entre elementos e personagens.

Assistir ao filme fez parte do meu périplo neste mês de novembro, o mês nacional da consciência negra, em que busquei algumas experiências que, curiosamente para mim, conectaram inovação com a ancestralidade. No início do mês, participei da organização do Scream Festival, em Salvador, e me chamou atenção que entre um painel sobre “Novos modelos de Negócios para a Indústria da Informação” e outro sobre “Possibilidades no Metaverso”, havia uma mesa com o título “Ancestralidade e um olhar para o futuro”, com um pajé e uma mãe de santo. Fiquei dias pensando se meu amigo e chefe da curadoria do evento, Diego Oliveira, também professor da ESPM, era um gênio ou um louco ao fazer um sanduíche como esse.

Até que, semanas depois, já passado o evento, fui assistir pela primeira vez ao filme Pantera Negra: Wakanda Para Sempre, continuidade da franquia Pantera Negra, da Marvel Studios/Disney. Aí tive um momento de epifania: não há oposição entre tradição e inovação. Há muita conexão. O filme é um sucesso de público e não preciso explicar aqui seu enredo, apenas destacar que ele mostra o encontro de dois reinos ultra desenvolvidos social, econômica e tecnologicamente, justamente por buscar na sabedoria ancestral a fonte para sua criatividade e inovação.

Depois de assistir ao filme, fui convidado pelo amigo Paulo Rogério, fundador do Vale do Dendê, para um painel no Festival Afrofuturismo, e aí já pude desenvolver esse raciocínio de maneira mais ampla. Uma visão de futuro com protagonismo negro passa por uma maior conexão com nosso passado. Vejamos o exemplo dos suecos que desenvolveram o Bluetooth, deram esse nome à tecnologia em homenagem ao rei Haroldo Dente Azul que unificou tribos nórdicas (como faz a tecnologia com os aparelhos) e, por fim, escolheram como seu símbolo as runas nórdicas com as iniciais de seu nome.

Lembremos que o nome do assistente virtual Alexa faz alusão ao nome de Alexandre, imperador macedônio que criou diversas cidades-polo onde concentrava o conhecimento, nas chamadas bibliotecas de Alexandria. Em 1801, um químico inglês descobriu um elemento que revolucionaria a medicina de imagem, ao possibilitar máquinas como a ressonância magnética, e deu a ele o nome de Nióbio, em homenagem à deusa grega Níobe, filha do Deus Tântalo (já que o nióbio é encontrado num mineral chamado tantalita).

Temos diversos exemplos de inovação de ponta inspirada pela ancestralidade de povos brancos. Um filme como Pantera Negra: Wakanda Para Sempre serve como alegoria para mostrar o potencial das pessoas negras empoderadas pelos seus ancestrais. Esse potencial é especialmente relevante num país como o Brasil, com mais da metade da população afrodescendente, mas que representa menos de 15% dos pesquisadores brasileiros.

Depois destas experiências que citei (Scream, Afrofuturismo e filme Pantera Negra: Wakanda pra Sempre), reforçou-se em mim uma visão de que empoderar a população negra aproximando dos seus mitos, fatos, personagens e filosofias é a única forma de contrapormos a famosa frase de Millôr Fernandes, que diz que “O Brasil tem um enorme passado pela frente”. O afrofuturismo é o paradigma que garante novos olhares enxergando o futuro, definindo quais questões priorizar, gerando riqueza que vá para novas mãos e fugindo de um viralatismo que nos faz ver a nós mesmos como uma versão piorada dos modelos europeus. Não! Somos a evolução de nossos ancestrais, uma combinação única na história, e a única esperança de não vermos “o futuro repetir o passado”, como cantou Cazuza.

Por isso defendo uma filosofia afro futurista da inovação, que busque inspiração na nossa ancestralidade e, assim, possa criar algo original, e não meras versões do que é feito lá fora. Como é Wakanda.

 

 

Publicado originalmente no site Meio e Mensagem

_______________
O conteúdo e opinião publicados neste artigo são de inteira responsabilidade do autor ou autora.

Lucas Reis

Lucas Reis

Colunista

Presidente da ABMP, CEO da Zygon e Doutor em Comunicação pela Universidade Federal da Bahia

Mais artigos

Ansiedade, estresse e correria – entre Chronos e Kairós

A experiência da ansiedade só é “divertidamente” nos filmes da Disney. Na vida real, cobra um pedágio altíssimo e requer maturidade emocional e resiliência. É sintomático que a animação “Divertidamente 2”, do estudio Pixar, tenha atingido um estrondoso êxito e muitos...

ler mais

Consumo insustentável na sociedade do excesso

Recentemente, fui convidado pelo Instituto Multiversidad Popular, em Posadas, na capital da Província de Missiones, na Argentina, para falar para os alunos de curso de pós-graduação. A missão da “Multi”, como a instituição é carinhosamente conhecida, é difundir...

ler mais

A potência oculta dos ritos de passagem

Vocês já repararam quantos ritos celebramos nos meses do verão? A temporada começa antes do Natal. Sagrados ou profanos, eles estão presentes nas tradicionais confraternizações que demarcam o fim do ano laboral, com os lúdicos “amigos-secretos”, típicos ritos “de...

ler mais

Priorizar a saúde mental

Foi há uns tantos anos atrás, eu atuava em um RH do Polo Petroquímico de Camaçari, foi quando escutei um operário chamar um colega de chão de fábrica, de Tarja Preta. Rodrigo era seu nome e ele havia usado antidepressivos ao longo de um período da doença. O bastante...

ler mais

junte-se ao mercado