Pós-verdades e o fator humano: verdade que escolhemos
Como profissional que busca captar “as verdades” da opinião pública, trago à discussão o termo “pós-verdade”, que vem sendo apontado como uma marca da forma como as pessoas saturadas de informações e inclinadas para a alienação noticiosa têm lidado com as informações na contemporaneidade. Noto que o conceito (“se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”) é uma afirmação da já conhecida teoria da percepção, elevada a uma grande sacada da pós-modernidade.
O que mudou, então? Respondo: O cenário, o contexto e o volume de informações. Estamos no exato momento em que observamos “a humanidade” se debater na tentativa de materializar a verdade e se adaptar a essa profusão de informações e enxergo as pós-verdades como efeitos colaterais dessa tentativa. Sem dúvida, a era da comunicação digital trouxe um novo desafio ao complexo mecanismo da percepção humana.
Evidente também que o externo, como a crise de confiança nas instituições e a polarização política, tornam difíceis as construções de consenso – favorecendo a profusão de informações tendenciosas e a ampliação dos estragos das fake news. Mas a discussão posta aqui é a de que não é só no ambiente externo que as pós-verdades são produzidas – o que protagoniza sua produção é o fator humano no ato de processar as informações. E porque esses mecanismos que estabelecem a percepção humana favorecem tanto a ocorrência desse fenômeno?
Entendo que para além das discussões nos campos políticos, jornalísticos e das ciências da informação e das redes, esforços devem ser empreendidos na direção de conhecer a gênese desse fenômeno e a psicanálise pode adensar essa discussão pensando-o a luz da influência dos mecanismos psíquicos na construção das verdades. Como nos mostra a psicologia, o homem é inclinado a rejeitar fatos que contrariem sua visão de mundo e está cada vez mais claro que o que nos predispomos a validar como verdades são informações que filtramos e escolhemos absorver para alimentar nossos desejos – conscientes ou não. Hoje se escolhe a quem escutar, podemos bloquear pessoas ou mesmo posts de jornais que tenham uma visão não alinhada à nossa, criando-se uma bolha de realidade que supostamente encarnaria a verdade/realidade.
Freud nos dá elementos para entender esse mecanismo seletivo que acaba por dar sustentação à propagação das fake news e explica, em grande parte, porque facilmente aderimos a notícias claramente fantasiosas. No fundo, repetimos o que já fazíamos quando bebês, fase em que não há percepção da diferença entre dentro e fora, entre quem sou e quem é o outro, entre o real e imaginário, e narcisicamente, construíamos a crença de que o correto e “o bom” têm a ver comigo e o que é ruim ao que está fora. Nota-se assim, que a noção de realidade é filtrada por uma lente única para cada sujeito e, neste sentido, a verdade e a mentira ganham contornos relativos e pessoais.
Transpondo essa questão inerente à nossa forma de produzir pensamentos – que delineia um limite extremamente fluido acerca das verdades, o que também percebo com preocupação nesses tempos de pós-verdade não é só a propagação de mentiras, mas principalmente, a ausência de dúvidas e de relativizações. Não há mais nuances: é preto ou branco, certo ou errado, eles ou nós. Essa crença na existência de uma verdade única somada à alta carga psicoafetiva na constituição do que chamamos de verdade explicam, em grande medida, os ferozes ataques aos que nos são contrários, pois, associada a essa detenção da verdade está em jogo um ataque à parte de quem pensamos e projetamos ser. As discussões extrapolam, assim, o campo das ideias e tornam-se substancialmente pessoais.
Não por acaso a bem sucedida estratégia utilizada na manipulação deliberada da notícia para fins eleitorais, que longe de mirar seus torpedos em discussões sobre visões de mundo, por exemplo, optam por reforçar preconceitos, se alicerçando na empobrecida exposição de elementos negativos “do outro”, para fomentar a radicalização de posicionamento do eleitorado – numa espécie de fundamentalismo comunicacional que prescinde de argumentação, com resultados tecnicamente incríveis, mas socialmente devastadores.
Mas como então nos blindar? Acredito que interagindo com as informações criticamente, duvidando especialmente daquilo que nos parece muito certo e confortável e estando dispostos a nos confrontar com o divergente, ainda que tenhamos que nos deparar com sensações psíquicas primitivas que remetem à angústia do vazio. Se abrir mão do conforto das aconchegantes ilusões pessoais for o preço a se pagar para se chegar mais perto da verdade, penso que devermos pagá-lo.
Para os profissionais da comunicação, importa lembrar, que vivemos tempos de mudanças rápidas e de exigências cada vez mais específicas de públicos específicos, o que cobra um monitoramento profissional permanente das tendências do comportamento. É preciso ter sempre em mente que as experiências que as pessoas processam em suas mentes são mais reais e relevantes do que dados apresentados – verdadeiros ou não. Apostar que a priori sabemos o que o consumidor/eleitor deseja ou como entenderá determinada comunicação, é subestimar a dinâmica dos estímulos a que a opinião pública está sujeita e o complexo sistema que delineia a percepção humana.
Por fim, dois apelos: lembrar que estamos em pleno processo de adaptação a essa nova era comunicacional e isso exige muita tolerância e que, temos um limite humano que nos permite enxergar os fatos só até onde suportamos. Cada um de nós têm limites para a percepção de acontecimentos, pensamentos e coisas que não temos nenhuma condição de enxergar. Vemos e escutamos, mas não enxergamos e assimilamos. São limites individuais, psíquicos e relativos à própria história. Respeitar, assim, a diversidade de opiniões e a forma como as pessoas percebem os fatos é mais do que uma atitude sensata e respeitosa, é honrar a nossa humanidade e irmandade.
Karin Koshima
karin@recomendapesquisas.com.br
(Esse texto é uma adaptação dos artigos “Pós-verdades e o humano” e “Pós-verdade: verdade que escolhemos” publicados originalmente no Jornal A Tarde)
Karin Koshima
Colunista
Diretora Executiva da Recomenda Pesquisas & Consultoria – especialista no comportamento do consumidor, eleitor e posicionamento de marcas. Às informações derivadas das pesquisas, agrega consultoria em planejamento, estratégia e marketing.
Se formou em psicologia na UFBA, é psicanalista com especialização em Psicologia pela USP (São Paulo), também Mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia.
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