Potência e inspiração: a Pessach judaica e a Páscoa cristã
Assisti à minissérie alemã “Nada ortodoxa”, da Netflix. Conta a história de Ester Shapiro, uma jovem judia que se rebela e foge de sua comunidade ultra ortodoxa e tradicionalista, em Nova Iorque, para traçar seu próprio destino em Berlim.
A minissérie traz a riqueza de rituais da fé judaica celebrados em ídiche, uma língua arcaica dos judeus da diáspora. É emocionante ver a cena da ceia pascal – o Seder de Pessach -, um jantar cerimonial judaico em que se recorda a história do Êxodo e a libertação do povo de Israel, onde um menino pergunta solenemente a um patriarca idoso e barbudo, talvez um rabino da comunidade:
“- Por que esta noite é diferente das outras noites?”.
A sala está repleta de familiares à mesa, as famílias são numerosas, mas todos fazem silêncio e escutam a narração dos fatos. Comemoração é o que o nome diz: compartilhamento de memórias, lembranças de fatos fundadores do rosto de uma nação. O ancião passa a contar a história do Pessach, quando o anjo do Senhor “passou” por cima das moradias e escolheu a Moisés para conduzir o povo judeu do cativeiro para “fazer a passagem” para a outra margem, rumo à terra prometida…
Uma lembrança de fatos, mas iluminada com o toque da transcendente presença de Deus no making off de eventos como o embate de Moisés com o Faraó, as dez pragas, a abertura do Mar Vermelho, a fome no deserto e o maná, as Tábuas da Lei, o Bezerro de Ouro, etc.
A data é uma comemoração festiva da libertação nacional, uma das maiores odisseias, talvez arquétipo de todas as revoluções: um povo inteiro, escravo, escolhe a liberdade e articula sua passagem, reconhecendo a autoridade de uma liderança. A ação cobrou um preço alto: os quarenta anos que plasmaram a geração do deserto, em busca de seu próprio chão. Na travessia, diz um teólogo italiano das antigas, Carlo Carreto, se deram conta de que “o coração do deserto é o deserto do coração.”
Seguindo mentalidade e o etos judaico, Jesus na Santa Ceia, véspera de sua morte e crucifixão, repete a fórmula ritual, inovando e instituindo a si próprio como o cordeiro imolado – Agnus Dei – e como o pão ázimo – Panis Angelicus . “Fazei isso em memória de mim” é a sua fórmula que se faz presente na liturgia das celebrações eucarísticas, celebradas em todo o universo católico.
Comer da carne e beber do sangue de Jesus, transmudados em pão e vinho, escancara a antropofagia arcaica. Para a antropologia, a repetição ritualística nada tem de nostálgica, não se trata de uma recordação de fatos na cronologia da história. Nada disso. Por trás do rito e do símbolo, jaz seu fundamento: o Mito. Fazer memória é tocar no mito fundador cuja temporalidade é sempre agora, sempre hoje, além do cronológico. É o sagrado.
A Páscoa Cristã, portanto, é festa enfaticamente religiosa e espiritual, eixo do mistério da redenção, salvação e resgate. Não mais uma redenção de escravos do Egito e do jugo do faraó, mas da condição humana existencial errática, da dívida de sentido. Eis o mistério da fé.
Ambas as páscoas trazem mensagens de libertação e o mesmo ímpeto e propulsão para se fazer passagens. Não mais se trata de travessias geográficas, mas existenciais, políticas, ecológicas, ontológicas, espirituais, etc.
São ambas as festas comemorações da libertação do mal. E o que é o mal, Hanna Arendt? O mal é ausência do pensamento e do racional, o mal é a pandemia de ignorância e fanatismo que assola nosso país.
São duas festas bonitas, muito próximas, ambas contêm a densidade do sagrado e nos colocam em sintonia com uma potência maior escondida na noite épica dos judeus e no amanhecer cristão quando se escuta o grito de Maria Madalena: – Aleluia!

Carlos Linhares
Colunista
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