Sobrevivência rima com resiliência

out/2022

Um cartoon publicado no Philosophy Matters, um site de divulgação de Filosofia, traz uma cena bizarra com Sísifo, o personagem da mitologia grega que enganou os deuses do Olimpo e foi por eles condenado a um trabalho absurdo: empurrar uma enorme pedra montanha acima para, ao chegar ao topo, deixa-la rolar de volta de onde ele, o pobre coitado, retomaria sua penitência.

A charge, ironizando com a atual cultura da aparência, mostrava um Sísifo empreendedor e resiliente. Por isso, ele aparece em pose de selfie com celular em punho, sorridente, escondendo a pedra atrás de si e fazendo cara de felicidade, ainda que morto de cansaço e sofrimento. Moral da história: Sísifos 4.0 precisam aparentar fortaleza e resiliência.

Resiliência virou uma expressão definitivamente na moda. Extrapolou o circuito discursivo coaching-Linkedin, onde é considerada antídoto para gatilhos de fracasso, e foi parar na academia onde tem recebido diferentes interpretações.

A “perfect storm”, a tempestade perfeita que vivemos no presente, reúne uma rara combinação de circunstâncias ameaçadoras que clamam por resiliência: a eclosão da pandemia do corona vírus, o estresse do confinamento, o luto das diferentes perdas, o ritmo alucinado da revolução digital com a automação mais acelerada que a inclusão de trabalhadores, a crise ambiental com eventos extremos, a profusão de refugiados, o capitalismo de plataformas e a precarização do mundo do trabalho, a devastadora guerra Rússia x OTAN na Ucrânia e seu impacto geopolítico, o incremento da extrema direita e do obscurantismo, etc., uma somatória de fatos que nos afeta e fermenta o caldo indigesto e difícil de engolir. Ave, resiliência.

No mundo do trabalho, a resiliência nossa de cada dia é ainda mais imperativa. Empresas competitivas precisam crescer. A palavra de ordem é fusão e aquisição, seguida de cortes e enxugamentos de postos de trabalho. Os demitidos viram excluídos e quem permanece vinculado experimenta a precarização das relações de trabalho. Parodiando a canção de Roberto Carlos, são muitas emoções e devastações.

Neste contexto, se acionam as tecnologias de pacificação, de controle refinado por parte da gestão do trabalho e se pervertem conceitos como o de resiliência, transformada em uma “maravilha curativa”, indicada para anestesiar o senso crítico e acionar a resignação. E dá-lhe positividade tóxica.

Resiliência é um conceito originado na Física e faz parte de um lote extenso de expressões saqueadas pelas Ciências Sociais e pela Psicologia, há mais de um século, que veio no mesmo container ao lado de movimento, energia, fluxo, sinergia, força, dinâmica, resistência, mecânica, etc.

Na Física, o termo data de 1807, e apareceu em um trabalho especializado da disciplina ‘resistência de materiais’. De fato, seu significado original fazia referência ao retorno da matéria ao seu estado inicial ou como ela era antes de sofrer o alto estresse.

Para os físicos, entretanto, o que as Ciências Sociais e a Psicologia chamam de resiliência na verdade se trata de elasticidade. É a capacidade que tem um material de absorver energia na região elástica que lhe dá o poder de voltar à forma original ao cessar a causa de sua deformação.

E para que a matéria absorva a pressão sem se romper, é necessária a resiliência que implica na absorção do impacto. Portanto, é de elasticidade que carecemos em meio a tantos processos que exigem readaptação e reinvenção. Como nos versos da velha canção: “…dar a volta por cima que eu dei, quero ver quem dava. Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima…”

A Física, para as Humanidades, é um farto banquete de analogias. Ela discorre, por exemplo, sobre materiais não-resilientes e que resistem ao impacto, deformando-se pouco ou nada, por conta de sua rigidez. Como não comparar esta rigidez e inflexibilidade às formas de pensar dogmáticas, intolerantes e obscurantistas que assolam nosso tempo? Mentes que não se dobram e se trincam por resistência feroz à interpretação, à contextualização, etc.

Sou um tiete fiel dos Jogos Paralímpicos. Ainda que não me interesse pelas partidas e disputas, fico ligado nos bastidores e acompanho as entrevistas de atletas campeões nas quais expõem sua trajetória, desde quando eram “meio humanos”, decepados, incompletos, “ser cego em meu país é ser meia pessoa”, deficientes, deprimidos, estigmatizados até soar a hora elástica do salto para as margens da recriação, da disciplina, do desafio e do pódio e das medalhas.

São privilegiados intérpretes da resiliência: nadadores sem pernas, corredores sobre próteses de alumínio, triatletas amputados, jogadores de basquete em cadeiras de rodas, futebolistas cegos com bolas sonoras, etc., há dezenas de modalidades nestes jogos.

Nas entrevistas, os paratletas mencionam o sofrimento deste tempo de frustração, de ausência de mobilidade e interação, de inveja da completude dos corpos dos outros, da angústia por acessibilidade, mas felizmente trazem os nomes dos artífices da resiliência: familiares, amigos, técnicos, médicos, professores, psicólogos, religiosos, associações desportivas, atletas veteranos, etc. Eles chegaram junto com a palavra.

Foi pela fala que estes outros atingiram precisamente “a região elástica que lhe dá o poder de voltar à forma original ao cessar a causa de sua deformação”, como reza a cartilha da Física. Pela palavra, estas presenças promoveram junto com o atleta a “absorção da pressão sem se romper”- e os levaram a atingir a necessária resiliência e a elaborarem a absorção do impacto.

Entrevistados confessaram que estas pessoas de palavra realizaram um tipo de implante nos seus corpos, antes percebidos como incompletos.

Soltaram o verbo e o verbo se fez carne.

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O conteúdo e opinião publicados neste artigo são de inteira responsabilidade do autor ou autora.

Carlos Linhares

Carlos Linhares

Colunista

Psicólogo e antropólogo, mestre e doutor pela UFBA. Atua na UNEB e UNIFACS. Consultor em Organizações, coach, instrutor e palestrante. Sócio diretor da Strata Consulting.
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